Leitura de História

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A Perseguição a Alice Kyteler: O Primeiro Caso de Bruxaria e Heresia na Irlanda

Os julgamentos por bruxaria geralmente evocam imagens das intensas perseguições dos séculos XVI e XVII, onde a caça às bruxas atingiu seu auge. No entanto, um dos primeiros e mais intrigantes casos de bruxaria e heresia na Irlanda ocorreu em 1324, envolvendo Alice Kyteler de Kilkenny. Este caso não apenas marca o primeiro registro de acusações combinadas de bruxaria e heresia na Irlanda, mas também o primeiro episódio em que uma mulher foi queimada por heresia no país.

Quem Era Alice Kyteler?

Alice Kyteler foi uma figura notória e controversa no Kilkenny do século XIV. Nascida em uma época em que as mulheres eram amplamente subjugadas e com poucas oportunidades de independência, Alice conseguiu superar essas barreiras de forma impressionante. Rica e independente, com quatro casamentos, Alice acumulou uma significativa propriedade e riqueza. Esta independência, no entanto, a tornou alvo de inveja e desconfiança.

Alice foi frequentemente alvo de fofocas maliciosas na comunidade local. Seus enteados a acusaram de ter enfeitiçado seus pais para casar-se com eles, garantindo que eles deixassem toda a sua riqueza para ela. Alegaram ainda que Alice havia assassinado seus maridos usando magia, deixando seus filhos legítimos sem nada. Essas acusações, aparentemente originadas de ressentimentos familiares, ganharam força e ajudaram a cimentar a reputação de Alice como bruxa.

O Conflito com Richard Ledrede

Um dos maiores desafios para Alice Kyteler foi seu confronto com Richard Ledrede, o arcebispo de Ossory. Ledrede, um franciscano zeloso e implacável, chegou à Irlanda em 1317 com uma missão clara: erradicar a heresia e práticas pagãs. Seu treinamento na corte papal em Avignon havia moldado suas visões rígidas e sua determinação.

Em 1324, Ledrede recebeu informações sobre uma suposta rede de bruxaria e heresia em seu território. Determinado a erradicar o que via como uma ameaça, apelou ao Lorde Chanceler da Irlanda. No entanto, ele encontrou resistência significativa na forma de Lord Arnold le Poer, o seneschal de Kilkenny, que era um fervente apoiador de Alice e um adversário de Ledrede.

A rivalidade entre Ledrede e Arnold se intensificou rapidamente. Arnold exigiu que Ledrede abandonasse sua busca por Alice, o que levou a um confronto prolongado entre os dois homens. A disputa resultou na prisão temporária de Ledrede, que retaliou colocando sua diocese sob interdito, removendo os sacramentos de seus fiéis e ameaçando suas almas. Esse ato radical exacerbou ainda mais as tensões, levando a um conflito prolongado entre os dois.

Acusações de Heresia e Bruxaria

Enquanto a disputa entre Ledrede e Arnold continuava, Lord Arnold decidiu realizar sua própria investigação sobre as acusações contra Alice. O que inicialmente parecia uma tentativa de proteger Alice rapidamente se transformou em um desastre. Em vez de limpar o nome de Alice, surgiram evidências substanciais que a ligavam a práticas heréticas.

Os documentos da época relatam que Alice e seus associados eram acusados de adorar demônios e realizar sacrifícios rituais, além de subverter os rituais da Igreja para seus próprios fins nefastos. A mais grave dessas alegações era a de que Alice mantinha relações sexuais com um demônio chamado Robin, Filho de Arte. Esse demônio supostamente se manifestava de várias formas, incluindo a de um gato, um cachorro e um homem de pele negra. As alegações de que Alice mantinha um relacionamento sexual com esse demônio chocaram e horrorizam a sociedade da época.

O caso Kyteler, ocorrendo antes da formalização de qualquer legislação específica sobre bruxaria na Irlanda, foi único em sua época. A acusação de que Alice tinha relações sexuais com um demônio foi uma das primeiras a ser registrada na Europa, estabelecendo um precedente sombrio.

A Fuga e a Condenação

Com as provas se acumulando contra ela, Alice Kyteler conseguiu escapar da Irlanda com a ajuda de sua filha, Petronilla de Meath. Petronilla, que era sua empregada, foi levada por Alice na fuga. A fuga bem-sucedida de Alice, no entanto, não protegeu sua empregada.

Petronilla de Meath foi capturada e submetida a tortura. Após ser espancada até confessar, ela foi condenada por bruxaria e heresia. Em 3 de novembro de 1324, Petronilla foi queimada na fogueira, tornando-se a primeira mulher a ser executada por heresia na Irlanda. Sua punição brutal simbolizou a intensificação da perseguição religiosa e as tensões da época.

O Contexto Social e Político

A perseguição a Alice Kyteler e a execução de Petronilla de Meath foram produtos de uma confluência de fatores sociais, políticos e religiosos. As disputas pessoais e políticas entre Ledrede e Arnold le Poer desempenharam um papel crucial na escalada das acusações contra Alice. Além disso, o ciúme e a animosidade pessoal dos enteados de Alice contribuíram para as acusações.

Ledrede, influenciado por sua experiência na heresia continental, respondeu com vigor aos rumores que circulavam por Kilkenny. Sua determinação em erradicar a heresia foi um reflexo de seu treinamento e das pressões que enfrentava em sua missão na Irlanda.

O conflito entre Igreja e Estado, exemplificado pela disputa entre Ledrede e Arnold, destacou como as batalhas pessoais e políticas podiam se entrelaçar com questões religiosas. O caso de Alice Kyteler não foi apenas um episódio de perseguição religiosa, mas também uma demonstração das complexas dinâmicas de poder da época.

O caso de Alice Kyteler e a execução de Petronilla de Meath são marcos na história da bruxaria e da heresia na Irlanda. Eles ilustram como as tensões sociais, políticas e religiosas se entrelaçavam e como as disputas pessoais podiam ter consequências fatais. A perseguição a Alice Kyteler marcou um ponto de inflexão na história irlandesa, antecipando uma era de crescente intolerância e medo que se manifestaria em perseguições semelhantes em toda a Europa.

A história de Alice Kyteler e Petronilla de Meath serve como um lembrete sombrio das consequências devastadoras da combinação de ciúmes pessoais, rivalidades políticas e fervor religioso. Embora a perseguição de bruxas e heréticos não tenha sido uma característica exclusiva da Irlanda, o caso Kyteler representa um capítulo único e significativo na narrativa mais ampla das caças às bruxas na Europa medieval.

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