Leitura de História

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A Verdadeira História de Ricardo III: Entre Fato e Ficção

Desde que Ricardo III ascendeu ao trono da Inglaterra em 1483, sua reputação tem sido profundamente conturbada por uma série de relatos extremos, imprecisos e, em muitos casos, totalmente fictícios. Esse emaranhado de informações, frequentemente aceito como verdade absoluta, gerou um debate contínuo sobre a verdadeira natureza de Ricardo. Ele seria um vilão maquiavélico que teria cometido assassinatos atrozes para garantir seu poder, ou seria um soberano digno, vítima da propaganda negativa dos Tudor? Vamos explorar a evolução dessa lenda complexa e ver como a imagem de Ricardo III foi moldada ao longo dos séculos.

Evidência Contemporânea: Os Primeiros Relatos

O início da narrativa negativa sobre Ricardo III pode ser traçado até as evidências contemporâneas que surgiram durante seu reinado. De acordo com o embaixador londrino Philippe de Commynes, Ricardo foi descrito como ‘desumano e cruel’, e mais cheio de orgulho do que qualquer rei da Inglaterra nos últimos cem anos. Essas descrições foram reforçadas por Dominic Mancini, um italiano que estava em Londres em 1483. Mancini afirmou que o povo amaldiçoava Ricardo com um destino digno de seus crimes. A Crônica de Crowland, escrita em 1486, também contribuiu para essa visão negativa, retratando Ricardo como um ‘rei demoníaco’ que supostamente via demônios enquanto cavalgava na batalha.

Embora esses relatos possam ser considerados calúnias comuns, eles fornecem uma visão importante sobre a percepção pública de Ricardo na época. A evidência de sua suposta crueldade e tirania não deve ser desconsiderada de imediato, já que existiam várias fontes contemporâneas que compartilhavam uma visão negativa sobre ele. Além disso, rumores de que Ricardo teria envenenado sua esposa, Anne Neville, surgiram e se espalharam, forçando-o a negar publicamente tais alegações.

O Amanhecer Tudor: A Transformação da Imagem de Ricardo

O ponto de inflexão na reputação de Ricardo III ocorreu em 1485, após sua derrota na Batalha de Bosworth para Henrique Tudor, que se tornou Henrique VII. A ascensão de Henrique ao trono marcou o início de uma era de propaganda intensiva contra Ricardo. Muitos escritores e cronistas mudaram drasticamente suas opiniões para se alinhar com a nova monarquia, provavelmente na esperança de ganhar o favor de Henrique VII.

Por exemplo, em 1483, John Rous, um funcionário dos Nevilles, havia elogiado Ricardo por sua ‘regra totalmente louvável’, mencionando que ele havia ganhado o ‘amor de seus súditos ricos e pobres’. Contudo, após a ascensão de Henrique VII, Rous descreveu Ricardo como o ‘anticristo’, uma figura demoníaca com características monstruosas. Em uma reviravolta semelhante, Pietro Carmeliano, um poeta italiano que inicialmente havia elogiado Ricardo, condenou-o vigorosamente após a ascensão dos Tudor, acusando-o de assassinato dos príncipes na Torre.

Essas mudanças abruptas nas opiniões refletem a influência da propaganda Tudor. Até mesmo o pub onde Ricardo havia passado a noite antes da Batalha de Bosworth foi renomeado de ‘The White Boar Inn’ para ‘The Blue Boar Inn’, em um esforço para distanciar-se de sua imagem.

A Construção da ‘Lenda Negra’

Ao longo do século seguinte, a propaganda Tudor foi extremamente eficaz na construção do que se tornou conhecido como a ‘lenda negra’ de Ricardo III. A obra de Thomas More, “História de Ricardo III”, publicada postumamente, desempenhou um papel crucial na cimentação da reputação de Ricardo como um tirano. More o retratou como ‘lamentável, perverso’ e responsável pelo ‘assassinato lamentável de seus sobrinhos inocentes’. A narrativa de More foi baseada em rumores e relatos que foram amplificados para servir aos interesses da nova dinastia Tudor.

Além disso, Polydore Vergil, em sua obra “Anglia Historia”, escrita com o incentivo de Henrique VIII em 1513, argumentou que a consciência de Ricardo sobre seu isolamento e reputação demoníaca o levou a criar uma fachada de piedade religiosa. Vergil descreveu Ricardo como ‘frantyke e louco’, atormentado por sua própria culpa.

A representação visual de Ricardo também foi manipulada para reforçar sua imagem negativa. Em retratos da época, a deformidade de Ricardo foi exagerada, com o ombro direito levantado e a expressão facial distorcida para transmitir um caráter maligno. Esses retratos ajudaram a perpetuar a imagem de Ricardo como um tirano cruel e deformado, uma ideia que foi amplamente difundida por escritores como Edward Hall, Richard Grafton e Raphael Holinshed.

O Impacto da Peça de Shakespeare

A peça de Shakespeare, escrita por volta de 1593, teve um impacto profundo na percepção pública de Ricardo III. Shakespeare, conhecido por sua habilidade em criar personagens complexos, transformou Ricardo em um vilão icônico. No entanto, o Ricardo de Shakespeare é apresentado como um personagem de maldade pura e sem remorso, que ascendeu ao poder através de uma manipulação maquiavélica. A deformidade física de Ricardo é utilizada como um símbolo de sua corrupção moral, e ele é descrito de forma altamente negativa.

Embora a peça de Shakespeare tenha contribuído para a popularização da imagem de Ricardo como um vilão implacável, é importante lembrar que a obra de Shakespeare é uma peça de ficção. A descrição de Ricardo como ‘crook-back’ e ‘ministro terrível do Inferno’ é mais uma construção literária do que uma representação precisa da realidade histórica.

Tentativas de Revisão Histórica

Nos séculos seguintes, houve várias tentativas de revisar a imagem de Ricardo III. No entanto, muitas dessas tentativas foram feitas por pessoas com interesses pessoais ou agendas específicas, e frequentemente contiveram imprecisões.

Sir George Buck, um dos primeiros revisionistas, escreveu em 1646 que as acusações contra Ricardo eram infundadas e que ele havia construído igrejas e feito boas leis. Vale ressaltar que o bisavô de Buck havia lutado ao lado de Ricardo em Bosworth, o que pode ter influenciado sua visão.

Durante os séculos XVIII e XIX, alguns historiadores e acadêmicos começaram a questionar a visão negativa de Ricardo, embora a peça de Shakespeare continuasse a ser amplamente apreciada. Em 1768, Horace Walpole forneceu uma reavaliação positiva de Ricardo, e intelectuais como Voltaire solicitaram cópias de seu trabalho. Isso sugeriu que a ‘propaganda Tudor’ estava perdendo sua autoridade.

Em 1924, a Sociedade Richard III foi fundada, conhecida como ‘A Sociedade do Javali Branco’. Este grupo de historiadores amadores dedicou-se a promover uma visão mais positiva de Ricardo, desafiando a imagem de tirano perpetuada pelos Tudor.

A Descoberta do Corpo de Ricardo III

O interesse por Ricardo III foi revitalizado em 2012, quando membros da Sociedade Richard III descobriram seu corpo sob um estacionamento em Leicester. A descoberta trouxe uma nova perspectiva sobre Ricardo, que foi tratado com um funeral de honra pelo Arcebispo de Cantuária e pelos membros atuais da Família Real.

Apesar da nova evidência física, o caráter de Ricardo continua a ser um tema de debate. A imagem de Ricardo como um assassino impiedoso, alimentada pela peça de Shakespeare e pela propaganda Tudor, ainda persiste. No entanto, a descoberta do corpo abriu novas possibilidades para uma reavaliação mais equilibrada da sua vida e legado.

Conclusão: A Legado de Ricardo III

A lenda de Ricardo III sobreviveu e se desenvolveu ao longo dos séculos devido a uma combinação de fatores. O mistério não resolvido sobre ‘os príncipes na torre’ manteve o debate ativo, e a narrativa emocionante e dramática sobre Ricardo contribuiu para o seu apelo comercial e popular. A brevidade de seu reinado e a falta de registros históricos detalhados também limitaram a quantidade de evidências disponíveis para uma avaliação completa.

Embora o Ricardo de Shakespeare tenha sido uma criação literária, a imagem negativa de Ricardo III que ele popularizou continua a influenciar a percepção pública. A questão central sobre Ricardo — se ele foi de fato responsável pelos assassinatos dos príncipes e outros crimes — permanece sem uma resposta definitiva. No entanto, a pesquisa histórica contínua e a análise crítica ajudam a iluminar o passado, oferecendo novas perspectivas sobre este rei controverso.

O legado de Ricardo III, portanto, é uma mistura complexa de fato e ficção, onde a verdade histórica e a narrativa literária se entrelaçam de maneiras intrigantes e, às vezes, desconcertantes.

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