Leitura de História

A Expansão do Tráfico de Drogas Sob a Bandeira Evangélica no Brasil

A expansão de facções criminosas evangélicas no Brasil reforça a intolerância religiosa. Descubra o impacto do fenômeno nas favelas e a relação com o tráfico.

Nos últimos anos, uma mudança surpreendente tem ocorrido nas favelas brasileiras. O tráfico de drogas, um dos maiores desafios enfrentados pela sociedade, agora parece estar associado a uma crescente onda de evangelismo, mais especificamente ao movimento neopentecostal. Essa associação tem dado origem a facções criminosas que se veem como “soldados de Jesus”, utilizando a fé evangélica como um escudo ideológico e, em muitos casos, como um mecanismo de legitimação de seus atos. Entre essas facções, destaca-se o Terceiro Comando Puro (TCP), que tem expandido suas atividades com a assinatura de símbolos cristãos, como a Estrela de Davi, em seu território de domínio no Rio de Janeiro. A presença do simbolismo religioso evangélico no tráfico de drogas é um fenômeno que não pode ser ignorado e que levanta questões complexas sobre fé, crime e intolerância religiosa.

O Surgimento da “Tropa de Aarão” e o Complexo de Israel

O Complexo de Israel, uma área na Zona Norte do Rio de Janeiro, tornou-se o epicentro de um novo tipo de domínio territorial exercido por traficantes evangélicos. O TCP, que controla comunidades como Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, passou a ser identificado por um símbolo religioso: a Estrela de Davi. O que inicialmente parecia ser apenas uma facção criminosa comum revelou-se uma organização com forte ideologia religiosa, que considera seus membros como “soldados de Jesus”. O nome “Tropa de Aarão” faz referência ao irmão mais velho de Moisés, reforçando uma conexão direta com os princípios da fé evangélica.

Em 2016, a facção passou a controlar essas comunidades, estabelecendo sua própria versão de “território sagrado”, no qual a presença de outras religiões, principalmente as de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, foi erradicada. As casas de culto dessas religiões foram destruídas e queimadas, em uma demonstração de intolerância religiosa, e, em seu lugar, a imagem de Jesus foi imposta como símbolo de domínio. Quem chega de trem à Parada de Lucas, por exemplo, é saudado pela bandeira israelense, um reflexo do que muitos consideram um “projeto religioso” imposto à comunidade. Ao olhar mais de perto, é possível ver que, sob o manto do evangelismo, o tráfico de drogas permanece, e é dele que esses grupos se alimentam.

A Violência Religiosa e a Intolerância em Expansão

A teóloga Vivian Costa, autora de “Traficantes Evangélicos – Quem São e a Quem Servem os Novos Bandidos de Deus” (2023), traz à tona a análise de um fenômeno alarmante: a crescente presença de líderes religiosos dentro das facções criminosas e o impacto dessa religiosidade nas favelas. A intolerância religiosa praticada por grupos como o TCP não é restrita às favelas do Rio de Janeiro; ela tem se espalhado por outras grandes cidades brasileiras, como Salvador e Fortaleza, onde traficantes de outras facções, como o Comando Vermelho, têm replicado os mesmos atos de violência contra os terreiros de umbanda e candomblé. Em Fortaleza, por exemplo, as mesmas práticas de intolerância religiosa foram registradas, com traficantes deixando a marca do “CV abençoado” em ataques a templos religiosos.

Esse fenômeno, conhecido por alguns como “narco religiosidade”, é uma apropriação da fé evangélica por parte de facções criminosas, que buscam, ao mesmo tempo, uma forma de legitimação de suas ações e um modelo de poder baseado na figura de Jesus Cristo. No entanto, muitos pesquisadores, como a antropóloga Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), apontam que a verdadeira motivação por trás desse comportamento é, na verdade, a necessidade de controle social e psicológico sobre os territórios dominados. Para os traficantes, a fé evangélica oferece uma capa moral, transformando o tráfico de drogas em um “serviço divino”, onde o mal é expurgado em nome de uma causa maior.

O Movimento Evangélico nas Comunidades e os Conflitos Religiosos

A expansão do movimento evangélico no Brasil tem sido uma constante nas últimas décadas. De acordo com diversas projeções, em breve, a população evangélica pode ultrapassar a de católicos, tornando-se o maior grupo religioso do país. Esse crescimento, aliado à característica carismática das denominações neopentecostais, tem se refletido nas periferias e nas favelas, onde os traficantes, que já exerciam controle sobre esses locais, não ficaram imunes à influência religiosa. A professora Christina Vital, também da UFF, alerta para o “cerco” religioso imposto aos moradores das comunidades, onde a prática de outras religiões foi proibida de se manifestar publicamente. A intolerância religiosa não se restringe apenas ao TCP, mas é um reflexo do fenômeno mais amplo que atravessa as grandes cidades brasileiras.

Em algumas áreas do Complexo de Israel, por exemplo, os moradores de outras fés são forçados a viver sua religiosidade de forma privada, sem exibição pública de símbolos ou rituais. Essa situação leva a um ciclo de medo e repressão, onde qualquer manifestação religiosa que não seja evangélica é imediatamente vista como algo demoníaco ou digno de ser banido. A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) do Rio de Janeiro tem registrado um número crescente de ataques a templos religiosos, em sua maioria de matrizes africanas, realizados por facções que impõem sua visão religiosa à força.

A Hipocrisia do “Traficante Evangélico”

Uma das maiores contradições desse movimento é a ideia de um “traficante evangélico”. Muitos, como o pastor Diego Nascimento, ex-traficante que se converteu durante sua estadia na prisão, acreditam que não é possível ser criminoso e cristão ao mesmo tempo. Para Nascimento, a ideia de seguir Jesus e, ao mesmo tempo, continuar com práticas ilícitas, como o tráfico de drogas, é uma contradição inaceitável. Embora a fé tenha sido uma porta de saída para Nascimento, muitos outros traficantes continuam a adotar o evangelismo como uma maneira de legitimar sua posição no tráfico e no domínio de suas comunidades.

O pastor Diego, hoje dedicado à evangelização de presidiários no Complexo de Bangu, exemplifica a possibilidade de redenção, mostrando que, embora a fé tenha se infiltrado nas facções criminosas, ela também pode ser um caminho para a transformação. Sua trajetória é um testemunho de que a religião pode, sim, ser uma via de saída do crime, mas desde que haja um compromisso genuíno com os ensinamentos cristãos, algo que, segundo ele, falta em muitos dos “traficantes evangélicos”.

A Religião Como Arma de Controle e Legitimidade

A expansão do tráfico de drogas sob a bandeira da fé evangélica no Brasil é um fenômeno complexo que exige uma reflexão mais profunda sobre a relação entre religião, poder e criminalidade. O uso do evangelismo como um mecanismo de legitimação por parte de facções criminosas revela as fragilidades das instituições sociais e religiosas e expõe o quanto a fé pode ser manipulada em nome de objetivos muito distantes dos princípios cristãos.

Enquanto a intolerância religiosa avança, transformando territórios inteiros em bastiões de uma única fé, é fundamental que a sociedade brasileira se atente a essas mudanças e busque formas de combater não apenas o tráfico de drogas, mas também a repressão religiosa e a violência que ela gera. Somente com uma compreensão crítica e uma ação coordenada será possível enfraquecer esses movimentos que misturam religião e crime, e garantir um espaço seguro para todas as crenças no Brasil.