Leitura de História

Mary Todd Lincoln: Entre o Julgamento Público e a Redefinição Histórica

Mary Todd Lincoln, alvo de julgamentos severos, ganha nova perspectiva no teatro e na história. Entre glória e tragédia, ela busca sua voz.

Na última inauguração presidencial dos Estados Unidos, como ocorre em toda cerimônia quadrienal, a atenção do público e da mídia se voltou não apenas para o presidente empossado, mas também para a figura que, historicamente, ocupa um lugar de fascínio e escrutínio: a Primeira Dama. No caso recente, Melania Trump chamou atenção com seu vestido e, especialmente, o chapéu azul marinho de aba larga que usava. A escolha seria uma proteção contra os olhares do público ou uma manifestação de estilo deliberada?

Esse tipo de especulação em torno das primeiras-damas é um fenômeno que atravessa os séculos, expondo essas mulheres a uma crítica implacável, muitas vezes mais relacionada à imagem pública que projetam do que a suas ações concretas. Poucas, porém, enfrentaram uma análise tão severa quanto Mary Todd Lincoln, esposa de Abraham Lincoln. Enquanto o presidente é celebrado como o salvador da União e emancipador dos escravos, sua companheira foi julgada com dureza quase universal, desde seus primeiros passos em Washington até seus últimos dias de vida.

Mary Todd Lincoln é hoje uma figura reavaliada no imaginário cultural, especialmente no teatro e na literatura, que buscam resgatar sua imagem do estigma histórico. O exemplo mais recente é a peça Mrs. President, escrita por John Ransom Phillips e em cartaz no Charing Cross Theatre, em Londres. A obra propõe uma visão caleidoscópica e poética da vida de Mary, focando na relação ficcional entre ela e o fotógrafo Mathew Brady, conhecido como o “pai do fotojornalismo americano”. Em um jogo de poder e percepção, a peça explora quem realmente detém o controle sobre a imagem pública: o sujeito ou o artista?

Uma Vida de Glória e Tragédia

Mary Todd Lincoln era uma mulher de personalidade forte e educação refinada. Nascida no Kentucky, em uma família escravocrata, ela se destacou desde jovem por sua inteligência e habilidade em debates políticos, algo raro para as mulheres da época. Casar-se com Abraham Lincoln foi um passo que surpreendeu muitos, mas ela viu nele um gênio em estado bruto, um homem que poderia alcançar grandeza – e trabalhou para moldar seu caminho rumo ao poder.

Porém, sua trajetória foi marcada por perdas devastadoras. Mary perdeu três de seus quatro filhos ainda em vida, e testemunhou o assassinato de seu marido, ao seu lado, no Ford’s Theatre. Essas tragédias deixaram marcas profundas, agravando sua saúde mental, já instável desde a juventude. Os historiadores modernos tendem a diagnosticar Mary com o que hoje chamaríamos de transtorno bipolar, uma condição que não era compreendida no século XIX e que a tornou alvo de críticas ainda mais cruéis.

Após a morte de Abraham Lincoln, a viúva caiu em desgraça pública. Seu filho, preocupado com seu estado mental, chegou a interná-la em um sanatório em 1875, o que alimentou ainda mais o estigma que a cercava. Contudo, como mostra a peça Mrs. President, essa imagem de “mulher desequilibrada” começou a ser revista nas últimas décadas.

Entre a Ficção e a História

O teatro sempre foi um terreno fértil para reinterpretações históricas, e Mrs. President não é diferente. A peça constrói uma narrativa em que Mary Todd Lincoln exige ser chamada de “Sra. Presidente”, recusando-se a ser relegada ao papel coadjuvante na história de seu marido. Ela dialoga com Mathew Brady, pedindo uma imagem que faça justiça à complexidade de sua vida.

No palco, Mary confronta não apenas Brady, mas também o público contemporâneo, questionando os limites entre verdade e representação. Sua busca por uma imagem digna, que a resgate do ridículo e da caricatura, ecoa no presente, em uma era onde redes sociais moldam identidades com base em cliques e curtidas.

A Reavaliação Moderna

Essa busca por uma reinterpretação de Mary Todd Lincoln não está restrita à peça de Ransom Phillips. Em Nova York, a produção teatral Oh, Mary!, escrita por Cole Escola, oferece uma versão satírica e irreverente da ex-primeira-dama, retratando-a como uma aspirante a estrela de cabaré. A comédia subverte os clichês históricos e usa o humor para explorar temas como liberdade e identidade. Apesar de sua abordagem caricatural, a peça reflete a crescente empatia por figuras históricas que, durante muito tempo, foram retratadas de maneira unidimensional.

A historiografia também tem revisitado Mary Todd Lincoln com um olhar mais compassivo. Jean Baker, em sua biografia de 1987, apresentou Mary como uma figura central na vida política de Abraham Lincoln, oferecendo apoio emocional e estratégico. Por outro lado, historiadores como Michael Burlingame têm uma visão mais crítica, destacando episódios de temperamento explosivo e possível corrupção. Essas interpretações divergentes revelam o quanto a figura de Mary ainda desperta debates acalorados.

Reflexões sobre Imagem e Poder

No fim das contas, Mary Todd Lincoln personifica um dilema universal: quem controla a narrativa sobre uma vida? É possível reescrever a própria história quando ela já foi moldada por tantas vozes externas? A peça Mrs. President e outras produções recentes parecem responder afirmativamente: sim, é possível, desde que haja disposição para encarar as múltiplas camadas que compõem uma vida humana.

Assim como as redes sociais de hoje, a história é um campo de batalha simbólico. Mary Todd Lincoln, uma mulher do século XIX, continua a nos lembrar que a luta por reconhecimento e dignidade atravessa gerações e encontra novas formas de expressão. E talvez seja exatamente por isso que ela permanece tão fascinante – não como um exemplo de perfeição, mas como um testemunho da complexidade humana.