Leitura de História

A floresta submersa que sustenta Veneza há 1.600 anos

Poucos lugares no mundo simbolizam com tanta força a engenhosidade humana quanto Veneza. A cidade das gôndolas, dos canais e dos palácios que parecem flutuar na água completou 1.604 anos em 25 de março de 2025. Mas, por trás de sua beleza etérea, há uma história impressionante de adaptação ao meio e de domínio da técnica: Veneza é, literalmente, uma floresta de cabeça para baixo.

Sob seus palácios, igrejas e campanários repousam uma rede monumental de milhões de estacas de madeira, cravadas no solo alagado da lagoa. Estas estacas — feitas de árvores como lariços, amieiros, carvalhos, elmos, abetos e pinheiros — têm entre menos de 1 metro e até 3,5 metros de comprimento. São elas que, desde o século V, sustentam os alicerces de uma das cidades mais célebres do planeta.

Trata-se de um feito notável de engenharia ancestral. Enquanto hoje usamos concreto armado e aço para erguer edifícios — com vida útil estimada, em média, de apenas 50 anos —, as estacas venezianas, encharcadas e enterradas no lodo, permanecem funcionais após mais de um milênio e meio. Como explicou Alexander Puzrin, professor de geomecânica do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, estruturas modernas não são feitas para durar séculos. Um de seus clientes, certa vez, pediu uma garantia de 500 anos para um templo Bahá’í em Israel — e sua resposta, resignada, foi: “Assine. Nenhum de nós estará aqui mesmo.”

As raízes invisíveis de uma cidade flutuante

O uso de estacas de madeira em fundações não é exclusividade de Veneza, mas o que torna a cidade única é a escala monumental dessa aplicação e a sua eficácia ao longo dos séculos. Só na fundação da Ponte Rialto existem cerca de 14 mil estacas. Na Basílica de São Marcos, construída ainda no ano 832, outras 10 mil, majoritariamente de carvalho, foram usadas.

Mas como tudo isso foi feito, numa época em que não se dispunha de motores ou gruas mecânicas? A resposta está nos battipaglia, os antigos cravadores de estacas, que martelavam manualmente os troncos no solo. E para manter o ritmo, cantavam canções repetitivas que exaltavam a glória de Veneza, a católica e, em tom de época, ameaçavam os inimigos da república.

Era um trabalho extenuante e técnico. As estacas eram inseridas da periferia para o centro, comprimidas até onde a resistência do solo permitisse. Em média, nove estacas por metro quadrado, organizadas em espiral. Suas pontas eram serradas para criar uma superfície uniforme abaixo do nível do mar, sobre a qual se colocavam tábuas horizontais chamadas zatteroni ou feixes de madeira (madieri). Sobre essa base, erguiam-se os edifícios.

Uma engenharia guiada pela natureza

Em vez de alcançar o leito rochoso, como ocorre em cidades como Amsterdã, Chicago ou Nova York, as estacas de Veneza funcionam com base na fricção entre madeira e solo. É o próprio terreno que, pressionado pelas águas e pela ausência de oxigênio, cria um sistema coeso e estável.

Esse método remete a saberes ancestrais. O arquiteto romano Vitrúvio, no século I a.C., já mencionava o uso de estacas para obras sobre a água. Povos mesoamericanos, como os astecas, também usaram a técnica em Tenochtitlán — a antiga Cidade do México — antes da chegada dos espanhois. A diferença é que, em Veneza, essa técnica foi usada de maneira sistemática e massiva, com uma precisão que impressiona até os engenheiros modernos.

Um equilíbrio entre madeira, água e lama

Ao contrário do que muitos pensam, a madeira das estacas venezianas não está livre da degradação. Mesmo em condições anaeróbicas — ou seja, sem oxigênio —, as bactérias continuam ativas, embora muito mais lentas do que fungos ou insetos. A grande chave da longevidade do sistema está no delicado equilíbrio entre os três elementos: madeira, água e lama.

Estudos recentes, conduzidos por pesquisadores das universidades de Pádua e Veneza, revelaram que esse sistema permanece surpreendentemente funcional. Mesmo com sinais de deterioração na madeira, a pressão hidrostática mantém tudo unido. Um exemplo emblemático é o campanário da Basílica dei Frari, construído em 1440. Ele afunda, em média, 1 milímetro por ano — resultado do peso concentrado em uma base reduzida, como se fosse um salto agulha sobre a lama.

Apesar disso, o sistema resiste. “Há motivos para preocupação? Sim e não”, explica Francesca Caterina Izzo, especialista em patrimônio cultural. A pesquisa deve continuar, mas, até hoje, o modelo se mostrou extraordinariamente durável.

O legado florestal da República de Veneza

O sucesso da fundação de Veneza também se deve à gestão inteligente dos seus recursos naturais. A República Veneziana, consciente da importância da madeira, instituiu práticas de silvicultura — o cultivo controlado de árvores — já no século XII. Documentos do ano de 1111, da região do Vale de Fiemme, estabelecia normas para a extração sustentável da madeira. Foi uma política visionária, especialmente se comparada à realidade de outros países europeus, como a Inglaterra, que já enfrentam escassez de madeira no século XVI.

“O Vale de Fiemme ainda hoje é coberto por florestas exuberantes”, explica Nicola Macchione, do Instituto de Bioeconomia italiano. É um testemunho vivo da relação entre cultura, território e sustentabilidade.

Madeira: o passado e o futuro da construção

Nos séculos XIX e XX, a madeira foi quase completamente substituída pelo cimento. Mas os tempos estão mudando. A madeira, por ser um recurso renovável, biodegradável e eficiente na absorção de carbono, voltou ao centro dos debates sobre a construção sustentável. Hoje, cidades como Tóquio e Oslo experimentam erguer arranha-céus de madeira, valorizando a leveza, a resistência sísmica e o baixo impacto ambiental do material.

Claro, não se trata de abandonar o concreto, mas de recuperar saberes antigos com tecnologia moderna. Em Veneza, construtores que jamais estudaram engenharia conseguiram, por intuição, criar um sistema de fundação mais durável do que muitos edifícios atuais. “Eles foram gênios da engenharia empírica”, afirma Puzrin. “Fizeram tudo certo.”

Veneza, portanto, não é apenas uma cidade bonita. É também uma metáfora do engenho humano e da simbiose entre civilização e ambiente. Uma cidade que não se impôs sobre a natureza, mas dialogou com ela — e, por isso, continua de pé, desafiando o tempo.