A Inglaterra anglo-saxônica, muitas vezes descrita como uma era de trevas, foi, na verdade, um período de intensa transformação, conflito e grande criatividade. Entre os séculos V e XI, essa região passou por uma série de mudanças profundas que moldaram seu desenvolvimento futuro. Embora marcada por derramamento de sangue e fervor religioso, a era anglo-saxônica também viu o florescimento da arte, da poesia e das instituições que, eventualmente, deram origem ao reino unificado da Inglaterra. O próprio nome “Inglaterra” deriva de “terra dos Anglos”, uma referência aos povos germânicos que migraram para a região. Neste contexto, exploramos o legado e a influência dos sete reinos anglo-saxões que definiram a paisagem política e cultural da época.
1. Kent: O Primeiro Reino Anglosaxão
Kent, localizado no sudeste da Inglaterra, é considerado o berço da cultura anglo-saxã na Grã-Bretanha. Fundado pelos jutas, uma das três tribos germânicas que chegaram à Inglaterra no século V, Kent teve uma história fascinante. Os lendários fundadores, Hengest e Horsa, são frequentemente citados como líderes da primeira onda de anglo-saxões, sendo convidados pelo senhor da guerra britânico Vortigern para defender seu território. Embora essa narrativa seja envolta em lendas, é possível que a fundação de Kent tenha sido facilitada por um acordo negociado com os britânicos locais, ao invés de uma mera invasão militar.
Durante o século VI, Kent se destacou como um próspero reino, com sua capital em Cantuária (Canterbury), um importante centro comercial situado na rota entre Londres e o continente europeu. A riqueza do reino é evidente nos bens funerários encontrados em tumbas do período, que refletem um nível significativo de sofisticidade e contato com outras regiões. O rei Æthelberht, um dos monarcas mais poderosos da época, estabeleceu uma aliança dinástica ao casar-se com Bertha, uma princesa franca. Esse casamento foi crucial para a disseminação do cristianismo na região, sendo Æthelberht o primeiro monarca anglo-saxão a ser convertido pelo missionário Santo Agostinho. Agostinho tornou-se o primeiro arcebispo de Cantuária, estabelecendo uma base sólida para o cristianismo em Kent.
Apesar de sua influência inicial, Kent eventualmente caiu sob o controle de Mércia, um reino rival, e, posteriormente, foi integrado ao reino de Wessex, que dominou a Inglaterra anglo-saxônica.
2. Essex: Terra dos Saxões Orientais
O reino de Essex, situado a leste de Londres, foi habitado pelos saxões orientais e teve uma rica herança cultural. A dinastia real de Essex alegava descender do deus tribal saxão Seaxnet, e muitos dos reis da região tinham nomes começando com a letra “S” — Sledd, Sæbert e Sigebert, por exemplo. A tradição de ter vários ramos reais dentro da mesma família governante foi uma característica marcante de Essex, mas nenhuma linha conseguiu manter o poder por mais de dois reinados consecutivos.
Essex possuía duas antigas capitais provinciais romanas — Colchester e Londres — o que lhe conferia uma posição estratégica e um potencial econômico significativo. No entanto, o reino frequentemente esteve sob a sombra de poderes mais poderosos, o que complicou sua relação com o cristianismo. A integração de Essex à influência merciana e, posteriormente, ao domínio de Wessex, marcou o fim de sua autonomia.
3. Sussex: O Último Reino a Adotar o Cristianismo
Sussex, localizado no sul da Inglaterra, é frequentemente associado à figura lendária de Ælle, um invasor que teria lutado contra os romano-britânicos e saqueado um forte romano. No entanto, a veracidade dessa história é contestada. Evidências arqueológicas sugerem que a região foi colonizada por germânicos no início do século V, antes de crescer para dominar a área.
Sussex era culturalmente distinto dos outros reinos, em grande parte devido à sua vasta floresta no nordeste. Este reino foi o último a se converter ao cristianismo, um processo que refletiu sua posição mais isolada e menor influência inicial. O reino acabou sendo subjugado por Mércia na década de 680 e, mais tarde, caiu sob o controle de Wessex, juntamente com os outros reinos do sul.
4. Northumbria: O Reino do Norte
Northumbria, situado no norte da Inglaterra, é um dos reinos mais significativos da era anglo-saxônica. Durante seu auge, o reino se estendia desde os rios Humber e Mersey, no sul, até o Firth of Forth, na Escócia. Formado pela união dos reinos de Bernicia e Deira em cerca de 604, Northumbria tornou-se o reino mais poderoso do século VII.
A região foi um centro de grande atividade cultural e religiosa, com figuras como o monge Beda, cuja obra “História Eclesiástica do Povo Inglês” fornece uma visão valiosa sobre a época. Northumbria produziu notáveis obras de arte, como os Evangelhos de Lindisfarne e o Codex Amiantinus. No entanto, o século VIII trouxe desafios significativos para o reino. Dos 14 reis que governaram durante o período, quatro foram assassinados, seis foram depostos e dois se retiraram para a vida monástica. A rivalidade com Mércia e a invasão dos vikings, que começaram com o saque de Lindisfarne em 867, marcaram o declínio do poder de Northumbria. A cidade de York foi tomada pelos vikings e manteve-se sob seu controle até o século X.
5. Anglia Oriental: O Reino dos Tesouros de Sutton Hoo
A Anglia Oriental é famosa pelo achado arqueológico de Sutton Hoo, que revelou uma tumba rica em artefatos de ouro e metal, oferecendo uma visão fascinante da cultura anglo-saxônica. O monte funerário 1, com seu grande navio de 90 pés, acredita-se ser o túmulo de um rei da Anglia Oriental, possivelmente Rædwald. Rædwald, contemporâneo de Æthelberht de Kent, é conhecido por sua abordagem sincrética à religião, mantendo altares tanto cristãos quanto pagãos em seu templo.
A riqueza encontrada em Sutton Hoo reflete o poder e a influência de Rædwald e do reino que ele governava. No entanto, como em muitos outros reinos anglo-saxões, a Anglia Oriental eventualmente declinou sob a influência de Mércia e foi posteriormente conquistada por Wessex e, finalmente, pelos vikings. Sob controle viking, a região permaneceu até ser absorvida por uma Inglaterra unificada.
6. Mercia: A Fronteira dos Poderes
O nome “Mercia” em inglês antigo significa “fronteira”, refletindo o papel do reino como uma potência localizada na borda do mundo anglo-saxão. Durante o século VIII, Mercia tornou-se o reino mais poderoso da Inglaterra, apesar de sua estrutura política ser mais uma confederação de povos do que uma unidade homogênea. Os ealdormen, nobres locais, governavam suas próprias regiões dentro do reino, o que resultava em uma estrutura descentralizada.
Mercia teve dois reis notáveis: Penda e Offa. Penda, no meio do século VII, foi o último grande rei pagão, conhecido por sua feroz resistência ao cristianismo. Sua morte enfraqueceu Mercia, que caiu sob o domínio de Northumbria por um período. Offa, que governou no século VIII, expandiu significativamente o reino e consolidou seu poder. Sua reputação como um rei temido é destacada pelos relatos de seu biógrafo Asser. Após a morte de Offa, Mercia enfrentou invasões vikings e, eventualmente, foi conquistada por Wessex sob Alfredo, o Grande.
7. Wessex: O Reino dos Saxões Ocidentais
Wessex, localizado no sudoeste da Inglaterra, foi o reino dos saxões ocidentais e desempenhou um papel crucial na formação da Inglaterra unificada. Wessex é notável por ter uma das poucas listas de reinado anglo-saxãs que inclui uma governante feminina — Seaxburh, viúva do rei. Ao longo do século VIII, Wessex enfrentou a ameaça de Mercia, mas rapidamente ganhou poder no século IX.
Alfredo, o Grande, é uma figura central na história de Wessex. Seu reinado no século IX marcou a resistência bem-sucedida contra as invasões vikings e a defesa do reino. Alfredo foi proclamado “Rei dos Anglo-Saxões”, e seu neto, Æthelstan, se tornou o primeiro “Rei dos Ingleses”, governando sobre uma Inglaterra unificada. Esse período é crucial para compreender a transição de uma série de reinos independentes para um reino consolidado.
A era anglo-saxônica foi um período de grande complexidade e mudança, caracterizado por uma mistura de conflito e colaboração. Os sete reinos anglo-saxões desempenharam papéis distintos na formação da Inglaterra, cada