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A Revolta da Vacina: O Caos da Vacinação Obrigatória no Rio de Janeiro

Há 120 anos, a Revolta da Vacina agitou o Rio de Janeiro. Entenda como a obrigatoriedade da vacinação desencadeou um levante popular.

A Revolta da Vacina, que ocorreu no Rio de Janeiro em 1904, representa um dos episódios mais marcantes da história da jovem República brasileira. Há 120 anos, uma lei federal estabeleceu a vacinação obrigatória em todo o país, um fato que se transformou em um dos principais estopins para a insurreição popular. 

Assinada no dia 31 de outubro de 1904 pelo presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves, a medida foi imposta em um contexto de reestruturação social e urbana que fervilhava na capital, então centro do poder político nacional.

A nova legislação determinava que a vacinação contra a varíola deveria ser realizada até o sexto mês de vida das crianças, exceto em casos comprovados de contraindicação. O regulamento ainda previa revacinação a cada sete anos para os que não demonstrassem terem sido imunizados nos últimos seis anos. Apesar de sua aparente intenção de proteger a saúde pública, essa política sanitária se revelou como uma imposição dura e impopular, gerando reações intensas entre a população.

O Brasil vivia um momento crítico com o ressurgimento da varíola, uma doença que havia sido considerada erradicada desde 1896. Segundo o historiador João Manuel Casquinha Malaia Santos, professor da Universidade Federal de Santa Maria, “o Rio de Janeiro, enquanto capital federal, estava em meio a reformas urbanas profundas”. O impacto dessas reformas, especialmente a abertura da Avenida Rio Branco, acentuou as tensões sociais, e a imposição da vacina apareceu como uma medida coercitiva em um contexto já saturado de insatisfação.

Em um cenário de crescente resistência, o dia 9 de novembro trouxe à tona a proposta de regulamentação da nova lei. O jornal A Notícia anunciou que os comprovantes de vacinação se tornaram imprescindíveis para a obtenção de empregos, matrículas escolares, viagens e até mesmo casamentos. Além disso, a lei previa multas pesadas para aqueles que se negassem a se vacinar. Este clima de coerção gerou um terreno fértil para a revolta, que se intensificou nos dias subsequentes.

Ao longo de uma semana de conflito, o centro do Rio foi tomado por manifestações que contaram com a participação de militares e civis descontentes. Esse levante não apenas evidenciou a insatisfação popular, mas também flertou com a possibilidade de um golpe de Estado. Christiane Maria Cruz de Souza, historiadora especializada em História das Ciências da Saúde, observa que “a Revolta foi um episódio restrito ao Rio de Janeiro, surgindo em meio a disputas políticas e sociais”. No entanto, fora da capital, a resistência à vacinação era mais sutil, motivada por uma série de fatores ideológicos, científicos e desconfiança nas novas medidas.

Não foi a primeira tentativa de implantar a vacinação obrigatória no Brasil. Desde o período pós-Independência, propostas semelhantes haviam sido feitas sem sucesso. A legislação de 1904, segundo a farmacêutica Tânia Dias Fernandes, estava inserida em um contexto de reformas urbanas e sociais. Entre 1903 e 1904, o surto de varíola se intensificou, pressionando o governo a tomar medidas mais drásticas. A necessidade de vacinação em massa tornou-se evidente, mas a forma como foi imposta rapidamente se tornou um ponto de conflito.

A resposta do governo foi rápida e autoritária: entre 10 e 16 de novembro de 1904, a cidade paralisou suas atividades. O governo decretou estado de sítio e suspendeu a obrigatoriedade da vacinação. As forças policiais reprimiram os protestos com violência, resultando em um saldo trágico de 30 mortos, 110 feridos e quase mil presos. Santos destaca que “a revolta não foi apenas uma questão de vacinação; havia um contexto mais amplo de insatisfação e resistência a medidas que afetam a vida cotidiana da população”.

As mudanças urbanísticas na cidade eram acompanhadas por um aumento significativo da população. Entre 1890 e 1906, o número de habitantes saltou de cerca de 500 mil para 800 mil, resultado da industrialização e da migração de ex-escravizados e imigrantes. A falta de habitação adequada levou à criação de cortiços, que foram demolidos durante as reformas, forçando a população mais pobre a se deslocar para os morros, onde surgiram as primeiras favelas do Rio de Janeiro.

O médico Oswaldo Cruz, então Diretor Geral de Saúde Pública, enfrentava a difícil tarefa de controlar epidemias como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Sua abordagem agressiva incluía a inspeção de casas, a eliminação de criadouros de mosquitos e a erradicação de ratos. No entanto, as medidas de saúde pública foram mal comunicadas, especialmente para as classes menos favorecidas, levando a um distanciamento entre a população e as autoridades sanitárias. Santos argumenta que “a falta de informação clara gerou desconfiança, e a figura de Oswaldo Cruz começou a ser vista com hostilidade”.

As táticas de vacinação eram rudimentares e mal organizadas, limitadas a algumas cidades e horários restritos, o que contribuiu para a resistência da população. Os conflitos culminaram em uma série de protestos no centro da cidade, onde os manifestantes queimaram lampiões, montaram barricadas e incendiaram bondes. Essa insurreição, que poderia ter sido contida por uma comunicação eficaz e transparente, transformou-se em um motim que evidenciava um profundo descontentamento social.

Entretanto, mesmo com a suspensão da vacinação obrigatória, as consequências da Revolta da Vacina foram devastadoras. Em 1908, uma nova epidemia de varíola vitimou quase 6.400 pessoas no Rio de Janeiro, evidenciando a fragilidade do sistema de saúde pública e a falta de confiança da população nas autoridades.

A narrativa da Revolta da Vacina não estaria completa sem mencionar o caso de Cypriana Leocádia, uma mulher negra cuja morte foi atribuída à vacina, se tornando um símbolo da resistência e da desconfiança. O laudo médico que identificou a “septicemia consecutiva à vacina” foi explorado por opositores ao governo para argumentar que a vacina era perigosa, intensificando o clamor popular contra a imposição da vacinação. A imprensa da época, dividida em opiniões, contribuía para acirrar os ânimos, com publicações que, ora defendiam a ciência, ora clamavam pelo direito individual à escolha.

Apesar das contestações, a Revolta da Vacina permanece como um marco significativo na história do Brasil, simbolizando não apenas a luta contra a varíola, mas também um momento de tensão entre a população e as autoridades em um contexto de profundas mudanças sociais e urbanas. As lições desse episódio nos lembram da importância de uma comunicação clara e da necessidade de engajamento da população em políticas de saúde pública.

Em um mundo onde a vacinação se tornou uma questão central de debate público, a Revolta da Vacina ressoa como um alerta sobre as consequências de ações autoritárias e a necessidade de respeito às vozes e preocupações da sociedade. A erradicação da varíola, alcançada apenas nas décadas seguintes, ilustra a complexidade do desafio enfrentado pela saúde pública e as implicações sociais que envolvem as campanhas de vacinação em massa.

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