Leitura de História

De Tiflis a Aldhani: Stalin, revolução e o DNA de Andor

A série Andor, de Star Wars, se inspira em um roubo real liderado por Stalin em 1907, revelando ecos políticos em meio à ficção galáctica.

Quando Tony Gilroy decidiu expandir o universo de Star Wars com a série Andor, ele mirava muito além das estrelas. Apesar de ambientada “há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante”, a série pulsa com ecos reais de revoluções humanas, rebeliões históricas e personagens que viveram nas margens de impérios opressores. Um desses ecos surpreendentes vem de um assalto ousado, planejado há mais de um século, em plena Rússia czarista — e que teve como mentor ninguém menos que o jovem Joseph Stalin.

Parece improvável, quase absurdo, mas é verdade: um dos momentos mais eletrizantes da série Andor, o assalto à guarnição imperial em Aldhani, foi inspirado diretamente pelo ataque bolchevique de 1907 na cidade de Tiflis (atualmente Tbilisi, capital da Geórgia). Esse episódio, marcado por explosões, violência e roubo de uma grande quantia em dinheiro, foi um divisor de águas para o movimento revolucionário russo — e também uma das sementes da narrativa construída por Gilroy.

Um assalto real, uma ficção inspirada

O plano era audacioso. Em 26 de junho de 1907, uma célula bolchevique armada até os dentes atacou uma diligência que transportava cerca de 300.000 rublos para o banco estatal russo. O ataque, que ocorreu em plena luz do dia, na Praça Yerevan, utilizou granadas e armas de fogo, espalhando pânico e destruição. Mais de 40 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. O mundo tomou conhecimento do assalto pela imprensa, e o impacto ressoou tanto nas estruturas do Império Russo quanto nos cofres do movimento revolucionário.

Por trás desse golpe, estava um jovem georgiano carismático, filho de um sapateiro, poeta nas horas vagas e seminarista expulso: Ioseb Besarionis dze Jughashvili. Conhecido por seus companheiros como “Soso”, ele se tornaria o temido Joseph Stalin. Segundo o historiador Simon Sebag Montefiore, autor de Young Stalin (2007), esse foi um dos muitos passos de Stalin em direção ao poder absoluto — e também um retrato inquietante de sua personalidade: pragmático, violento, determinado.

Gilroy, leitor voraz de biografias e histórias de revoluções, não hesitou em trazer esse evento para o cerne de sua narrativa em Andor. Em entrevista à Rolling Stone, o roteirista revelou ter ficado fascinado pela juventude de Stalin: “Ele se parece com o Diego [Luna]”, brincou, referindo-se ao protagonista da série. Mas a semelhança vai além da aparência física — é a trajetória do homem marginal, do fora-da-lei, que desafia um império, que verdadeiramente ecoa em Cassian Andor.

Cassian Andor: herói relutante, rebelde necessário

Ao longo da primeira temporada de Andor, vemos Cassian se transformar de um ladrão oportunista em um agente vital da Aliança Rebelde. Sua jornada é marcada por perdas, escolhas morais difíceis e uma crescente consciência política. O assalto à guarnição imperial em Aldhani, que se desenrola em três episódios tensos, não é apenas um roubo — é um manifesto. Trata-se de tirar do império os recursos com os quais ele sustenta sua opressão, e direcioná-los para a construção de algo novo.

Assim como Stalin operava à margem do Império Russo, Cassian atua nas franjas do domínio imperial galáctico. Ambos compartilham um instinto de sobrevivência aguçado, carisma contido e uma visão — por vezes dúbia — do que significa liberdade. O paralelo traçado por Gilroy não é acidental, mas sim uma escolha consciente de mergulhar na complexidade dos personagens que fazem história, seja ela real ou fictícia.

Um império em decadência, um levante em formação

A força de Andor está em sua abordagem madura do universo Star Wars. Longe dos sabres de luz e dos embates maniqueístas entre Jedi e Sith, a série aposta em conflitos mais terrenos: burocracia, opressão cultural, miséria, ressentimento social. A Rebelião nasce não em câmaras políticas, mas nas celas de prisões industriais, nos becos escuros de Ferrix e nas montanhas sagradas de Aldhani.

Outros personagens da série também refletem figuras históricas da revolução russa. Karis Nemik, idealista e autor de um manifesto filosófico da resistência, remete aos escritos inflamados de Leon Trotsky. Luthen Rael, interpretado com gravidade por Stellan Skarsgård, é uma figura que espelha Vladimir Lenin: culto, manipulador, implacável. Luthen não hesita em sacrificar aliados por uma causa maior — como Lenin também não hesitou em usar Stalin, apesar de seu passado criminal.

Montefiore, ao comentar essas semelhanças à BBC, disse: “Stalin podia escrever e ler, mas também sabia dar um golpe. Ele era o tipo de revolucionário que Lenin precisava. O mesmo vale para Cassian e Luthen.” É essa duplicidade — o intelectual e o criminoso, o idealista e o assassino — que torna os personagens de Andor tão convincentes.

Star Wars como espelho político

Desde sua criação por George Lucas, Star Wars sempre foi uma narrativa política. Inspirado pela ascensão de ditaduras no século XX e pela Guerra do Vietnã, Lucas construiu o Império como uma metáfora para regimes autoritários reais. Em Andor, essa metáfora ganha contornos ainda mais nítidos. O Gabinete de Segurança Imperial, com seus corredores frios e intrigas palacianas, lembra a temida Okhrana czarista ou a Cheka soviética. Os oficiais imperiais se comportam mais como burocratas corruptos do que vilões caricatos.

Detalhes aparentemente banais — como a casa fria de Maarva Andor, ou o uniforme ajustado de Syril Karn — contribuem para a sensação de realismo. A opressão, aqui, é palpável. E com o autoritarismo ressurgindo no mundo atual, as mensagens de Andor parecem menos uma fábula distante e mais um alerta inquietante.

História viva entre as estrelas

É fascinante ver como uma franquia galáctica como Star Wars pode ser revigorada por episódios históricos tão concretos. O roubo em Tiflis, o jovem Stalin, os embates ideológicos que moldaram o século XX — tudo isso serve de combustível narrativo para uma série que se recusa a subestimar seu público. Ao explorar as sombras do passado, Andor ilumina as estruturas do poder presente, revelando que toda rebelião — real ou fictícia — nasce da urgência de justiça e da recusa em aceitar o silêncio.

Como lembrou Walter Marsh, ao escrever no The Guardian: “Impérios não desmoronam da noite para o dia. Eles apodrecem lentamente, corroídos por dentro.” Andor entende isso, e nos convida a olhar para o passado — e para o futuro — com os olhos bem abertos.