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Expulsão de Figari: O Escândalo do Sodalício da Vida Cristã

A Igreja Católica, ao longo dos séculos, tem sido marcada por episódios que desafiam a sua integridade e a confiança dos fiéis. O caso envolvendo Luis Fernando Figari, fundador do Sodalício da Vida Cristã, é um exemplo perturbador de como o poder pode corromper dentro das instituições religiosas. Figari, que por anos foi o líder incontestável deste movimento conservador, usou sua posição para criar um ambiente de controle baseado em violência, humilhação e abuso sexual.

O Sodalício da Vida Cristã, ou Sodalitium Christianae Vitae em latim, é uma organização religiosa fundada por Figari em 1971, em Lima, no Peru. O grupo, que começou como um movimento eclesial, rapidamente ganhou influência, sendo reconhecido oficialmente pelo Vaticano em 1997 durante o pontificado de João Paulo II. Com seu lema “quem obedece nunca se engana”, a organização atraiu muitos jovens, prometendo uma vida dedicada à e à obediência.

No entanto, a realidade dentro do Sodalício era muito diferente das promessas de vida cristã. Ex-membros do grupo relataram um ambiente de abuso generalizado, onde a lealdade a Figari era mantida através de métodos brutais. Jovens sob a tutela do Sodalício foram submetidos a agressões físicas, humilhações psicológicas e abusos sexuais, perpetuados não só por Figari, mas também por outros líderes dentro da organização. Essas práticas, longe de serem isoladas, pareciam ser sistemáticas, criando um regime de terror e submissão que durou décadas.

A influência do Sodalício no Peru cresceu a tal ponto que denúncias contra Figari e outros membros da organização foram ignoradas e silenciadas por anos. A poderosa aliança entre o movimento e os círculos políticos e financeiros do país contribuiu para essa impunidade. Mesmo quando as denúncias começaram a emergir, foi necessário um longo processo até que a Igreja tomasse medidas efetivas contra o fundador do grupo.

Em agosto de 2024, o Vaticano, sob a liderança do Papa Francisco, finalmente agiu de forma decisiva. A Conferência Episcopal Peruana anunciou que o Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica havia decretado a expulsão de Luis Fernando Figari do Sodalício da Vida Cristã. Essa medida foi vista como um esforço para “restabelecer a justiça” e proteger os fiéis no futuro.

Apesar da expulsão de Figari, o Sodalício continua a operar, não só no Peru, mas em outros países, incluindo o Brasil. No Brasil, o movimento mantém uma presença desde 1986, com comunidades no Rio de Janeiro, Petrópolis e São Paulo. A organização, que ainda goza de reconhecimento oficial pelo Vaticano, expressou apoio à decisão do Papa Francisco, afirmando que a expulsão de Figari era um “gesto de caridade pastoral, de justiça e de reconciliação”. No entanto, para muitas das vítimas, essa ação veio tarde demais e parece insuficiente.

A história de Luis Fernando Figari começa em Lima, em 1947. Filho de uma família influente, estudou em escolas de elite e formou-se em Ciências Humanas e Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. Foi durante seus anos universitários que começou a conceber a ideia do Sodalício, inicialmente sem um foco religioso. Porém, ao perceber o potencial de um movimento dentro da Igreja, Figari decidiu fundar o Sodalício da Vida Cristã, junto com Germán Doig e outros seguidores, em 1971.

O movimento rapidamente se posicionou como uma força contra a Teologia da Libertação, uma corrente católica que promovia a justiça social e os direitos dos pobres, especialmente influentes na América Latina nas décadas de 1980 e 1990. Figari via a Teologia da Libertação como uma ameaça à Igreja tradicional e utilizou o Sodalício para combater suas ideias. Os sodalitas, como eram chamados os membros do movimento, se viam como “soldados contra a esquerda”, segundo a jornalista Pão Ugaz, que investigou o caso.

À medida que o movimento crescia, também cresciam as denúncias contra Figari. Em 2009, os jornalistas Pedro Salinas e Pão Ugaz publicaram o livro “Mitad monges, mitad soldados” (Meio monges, meio soldados), que trouxe à tona as primeiras denúncias públicas de abusos cometidos dentro do Sodalício. O livro revelou um lado obscuro do movimento, onde jovens eram forçados a se submeter a práticas degradantes e abusos sob a justificativa de obediência religiosa.

Entre os relatos mais perturbadores está o de José Enrique Escardó Steck, que afirmou ter sido vítima de abusos físicos e psicológicos, além de ameaças de morte por parte de Figari e outros líderes do Sodalício. Escardó relatou que foi forçado a dormir em uma escada por um mês e que ele e outros jovens eram obrigados a se espancar mutuamente como parte de um “sistema de bullying organizado”.

Outros membros do Sodalício, como Germán Doig e Daniel Murguía, também foram acusados de abusos. Doig, que faleceu em 2001, teve seu processo de beatificação interrompido pelo Vaticano em 2011 devido às acusações. Murguía foi preso em 2007, após ser flagrado em um motel com um menino de 11 anos, mas foi solto três anos depois, alimentando suspeitas de cumplicidade e impunidade dentro da organização.

A pressão por justiça aumentou com a ascensão de Jorge Bergoglio ao papado. Sob o nome de Papa Francisco, ele iniciou uma série de reformas na Igreja, incluindo uma investigação aprofundada sobre o Sodalício. Em 2016, o superior geral da organização, Alessandro Moroni, declarou publicamente que Figari era “culpado pelos abusos que lhe foram atribuídos”. Mesmo assim, a sensação de impunidade persiste entre as vítimas, especialmente porque Figari permaneceu em Roma, protegido pela Igreja.

Em 2023, o Papa Francisco enviou ao Peru o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, e o padre espanhol Jordi Bertomeu para investigar os abusos no Sodalício. Essa missão resultou na renúncia de José Eguren, arcebispo de Piura e Tumbes, que havia sido implicado nos escândalos. Finalmente, em 2024, a expulsão de Figari do Sodalício foi vista por muitos como um passo necessário, mas insuficiente.

Para muitos, como José Enrique Escardó Steck, a expulsão de Figari é apenas um gesto simbólico. Ele acredita que a Igreja continua mais preocupada com sua imagem do que com a justiça para as vítimas. Segundo ele, a organização deveria ser dissolvida para que se pudesse encerrar definitivamente um capítulo marcado pela violência e pelo abuso.

Enquanto isso, o futuro do Sodalício da Vida Cristã permanece incerto. A liderança atual afirma estar comprometida com um “processo de renovação”, mas as dúvidas persistem. A Igreja Católica enfrenta mais uma vez o desafio de restaurar a confiança perdida, é o caso de Luis Fernando Figari que serve como um lembrete sombrio dos perigos do poder absoluto dentro das instituições religiosas.

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