Leitura de História

Groenlândia: Um Passado Pintado de Vermelho e um Futuro em Disputa

Ah, a Groenlândia! Esse gigantesco bloco de gelo perdido no Atlântico Norte, onde a história é tão gélida quanto suas paisagens e tão ardente quanto a tinta vermelha que, um belo dia no final da década de 1970, foi despejada sobre a estátua de Hans Egede — o controverso missionário dinamarquês. Para quem não sabe, Egede é uma espécie de Pedro Álvares Cabral da Groenlândia, mas com um toque de “vamos salvar suas almas… enquanto definimos suas terras”.

Eu estava lá, na Groenlândia dos anos 70, vivendo em Nuuk (na época ainda chamada de Godthaab, porque por que não manter um nome colonial, né?). Meu pai lecionava geografia na faculdade local e, todos os dias, eu passava pela estátua de Egede a caminho da escola. Foi impossível não notar a tinta vermelha — uma espécie de grito silencioso da população Inuit, que já começava a se cansar das “mudanças civilizatórias” impostas pela Dinamarca.

Naquela época, as tensões entre dinamarqueses e groenlandeses estavam começando a ferver. O tilintar das garrafas de cerveja nos sacos plásticos levados pelos Inuit para seus pequenos apartamentos era um triste testemunho do alcoolismo que se espalhava como uma praga — mais um presente do colonialismo. Claro, os dinamarqueses também trouxeram “coisas boas”, como educação e saúde modernas. Mas será que o saldo foi tão positivo assim?

De Godthaab a Nuuk: A Resistência Cultural

A década de 1970 foi um marco. A capital deixou de se chamar Godthaab para adotar o nome original, Nuuk. Pequenos movimentos de resistência cultural começaram a surgir, especialmente entre os jovens estudantes da Faculdade de Formação de Professores, que exigiam ser ensinados em Kalaallisut, a língua nativa.

O sonho de uma Groenlândia independente estava apenas começando a tomar forma. Mas foi necessário muito mais do que tinta vermelha para impulsionar esse movimento. Décadas depois, a questão da independência ainda ecoa. Em 2019, Donald Trump, em seu estilo sutil (leia-se: nada sutil), propôs comprar a Groenlândia, chamando isso de “um grande negócio imobiliário”. Sim, ele queria a Groenlândia como se fosse um condomínio à venda no Zillow.

Trump, Dinamarca e a Questão da Soberania

Trump afirmou que os groenlandeses “querem estar conosco”. Será? Uma pesquisa revelou que 85% dos groenlandeses são contra se tornarem parte dos Estados Unidos, com apenas 6% favoráveis. Ainda assim, a fala do então presidente americano despertou um novo debate sobre o futuro da ilha. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, foi categórica: “A Groenlândia não está à venda. Ela pertence aos groenlandeses”.

Mas o que querem os groenlandeses? Será que o sonho de independência é realmente viável? E mais importante: a Groenlândia pode sobreviver sem a “concessão em bloco” de quase meio bilhão de euros que recebe anualmente da Dinamarca?

Feridas do Passado: Os Erros Dinamarqueses

Para entender o presente, é preciso revisitar o passado — e ele não é nada bonito. Entre 1966 e 1970, quase metade das mulheres groenlandesas em idade fértil teve dispositivos intrauterinos (DIUs) implantados sem consentimento. Isso foi descrito pelo primeiro-ministro groenlandês Múte Egede como “genocídio direto, realizado pelo estado dinamarquês”.

Além disso, centenas de crianças groenlandesas foram retiradas de suas famílias e enviadas para a Dinamarca para serem criadas por pais adotivos. Muitas mães nunca foram informadas de que seus laços com os filhos seriam completamente cortados. O trauma dessas separações permanece vivo até hoje.

A escritora Iben Mondrup, que viveu parte da infância na Groenlândia, descreve essa relação como um paternalismo mascarado de generosidade. “Os dinamarqueses se veem como benfeitores, mas a Groenlândia cresceu e quer caminhar com suas próprias pernas”, afirma.

Independência ou Interdependência?

Hoje, cerca de dois terços da população groenlandesa expressa o desejo de independência. No entanto, o conceito de “independência” é mais complexo do que parece. Como destaca Jeanswear Poulsen, da Oceans North Kalaallit Nunaat, até estados soberanos são interdependentes no mundo moderno.

A economia é o maior obstáculo. Sem o subsídio dinamarquês, a Groenlândia precisaria desenvolver novas fontes de receita, como a mineração e o turismo. Mas a questão permanece: será que a Groenlândia está pronta para cortar totalmente os laços com a Dinamarca?

O Fator Trump e o Futuro da Groenlândia

As ambições de Trump trouxeram à tona uma nova onda de reflexão na ilha. Muitos groenlandeses consideram que uma associação livre com a Dinamarca — ou mesmo com países como Canadá, Islândia e Noruega — seria uma alternativa mais viável do que a independência completa.

A verdade é que a Groenlândia está em uma encruzilhada histórica. Seu futuro depende de um delicado equilíbrio entre preservar sua identidade cultural e encontrar um caminho econômico sustentável. Seja como um estado soberano, parte de uma associação livre ou mantendo o status atual, a única certeza é que a Groenlândia não será mais o que era. E talvez isso seja uma coisa boa.