A morte de um Papa sempre desencadeia um momento de luto solene, introspecção teológica e intensa movimentação diplomática no interior dos muros vaticanos. No caso de Francisco, o primeiro Papa latino-americano, falecido aos 88 anos, o impacto é ainda mais simbólico. Sua partida marca não apenas o fim de um pontificado progressista, mas também o início de uma complexa engrenagem eclesiástica: o conclave.
Essa escolha não é apenas uma eleição, mas um verdadeiro ritual civilizacional. Trata-se da designação do novo pastor de 1,4 bilhão de católicos espalhados pelos cinco continentes. No centro dessa tradição milenar, permanece uma pergunta: como se escolhe um novo Papa?
O início do fim: a morte do Pontífice
Assim que o falecimento é confirmado — neste caso, pelo chefe do departamento de saúde do Vaticano e pelo camerlengo, cardeal Kevin Farrell — o processo ritualístico começa. Francisco, conhecido por sua simplicidade franciscana, já havia estabelecido diretrizes mais modestas para seu funeral. Em vez dos tradicionais três caixões, seu corpo será depositado em apenas um. Uma cerimônia privada antecede a procissão pública até a Basílica de São Pedro.
Serão depositados no túmulo o pallium (símbolo da autoridade papal), um rogito (documento com os feitos de seu pontificado) e sacos com moedas — de prata, ouro e cobre — equivalentes aos anos de sua liderança. Um gesto repleto de significados que remete às antigas práticas imperiais e ao simbolismo da realeza espiritual.
Sede vacante: a Igreja sem cabeça
A partir do momento em que o anel do pescador — utilizado para selar documentos papais — é destruído cerimonialmente pelo camerlengo, tem início o período chamado Sede vacante. Durante essa fase, a Igreja Católica permanece literalmente “sem sede” — sem seu líder supremo.
É um tempo de silêncio institucional e de preparação espiritual. Não há decisões doutrinárias, nomeações ou orientações oficiais. O foco desloca-se para o Colégio dos Cardeais, que assume o protagonismo nesse interregno.
O conclave: segredo, tradição e escolha
Passados entre 15 a 20 dias após o falecimento do pontífice, os cardeais com menos de 80 anos são convocados a Roma para o conclave — uma palavra que, curiosamente, vem do latim cum clave, “com chave”, remetendo ao isolamento exigido dos participantes. São 135 cardeais aptos, dos quais 108 foram nomeados por Francisco, o que sugere, mas não garante, uma continuidade de seu pensamento pastoral mais inclusivo.
Durante o conclave, os cardeais vivem na Casa Santa Marta, dentro do Vaticano, e percorrem diariamente a curta distância até a Capela Sistina. Ali, sob os afrescos do Juízo Final de Michelangelo, ocorre a eleição do novo Sumo Pontífice. Nesse cenário renascentista, em meio à arte, ao silêncio e à história, decide-se o futuro da maior instituição religiosa do planeta.
Uma decisão envolta em mistério
O processo é deliberadamente secreto. A Igreja entende que a eleição de um Papa não deve ser contaminada por pressões políticas ou midiáticas. Por isso, os eleitores estão proibidos de manter contato com o mundo externo. Até mesmo os assistentes, como médicos e cozinheiros, são obrigados a manter absoluto sigilo.
A votação segue um ritmo meticuloso: até quatro votações diárias, e a exigência de dois terços dos votos para a escolha ser válida. Após cada votação, os votos são queimados. Fumaça preta significa que nenhum nome foi escolhido. A fumaça branca — símbolo da eleição — é acompanhada pelo repicar dos sinos de São Pedro.
A tradição do nome e da vestimenta
O eleito, após aceitar formalmente a missão, retira-se para a chamada “Sala das Lágrimas”. Ali, envolto pelo peso histórico do cargo, veste pela primeira vez o manto branco, chamado mozzetta, e a zucchetto, uma pequena touca. A sala tem esse nome por já ter testemunhado lágrimas de emoção e temor de papas recém-eleitos.
Na sequência, é feita uma das escolhas mais simbólicas do pontificado: o nome papal. Francisco, por exemplo, homenageia São Francisco de Assis, inspirado pelo cardeal brasileiro Cláudio Hummes que, ao abraçá-lo após a eleição, sussurrou: “Não se esqueça dos pobres”.
Historicamente, o nome escolhido revela pistas sobre a espiritualidade e o estilo de liderança que o novo Papa pretende adotar. João, por exemplo, foi o nome mais usado, pois remete à continuidade e tradição. Já nomes inéditos podem sinalizar ruptura ou renovação.
Do conclave à Praça de São Pedro
Finalmente, o novo Papa é apresentado ao mundo da varanda central da Basílica de São Pedro. Um cardeal anuncia, com voz firme e ritualística: “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus Papam!” — “Anuncio-vos uma grande alegria: temos um Papa!”. O mundo, em suspenso, finalmente conhece o nome e o rosto daquele que conduzirá a barca de Pedro nos mares do século XXI.
Uma escolha com ecos globais
A eleição papal, embora confinada a uma capela renascentista, repercute nos quatro cantos do globo. Afinal, o Papa é não apenas chefe espiritual, mas também um dos últimos líderes verdadeiramente globais. Sua voz ecoa sobre temas como justiça social, paz mundial, imigração, meio ambiente e direitos humanos.
Se no passado os conclaves eram essencialmente europeus, hoje refletem uma Igreja que se torna, aos poucos, mais diversa. Com um número crescente de cardeais asiáticos, africanos e latino-americanos, as tensões entre tradição e renovação estão cada vez mais evidentes. E é nesse embate que o novo Papa precisará se equilibrar: entre o peso da história e as urgências do presente.
O conclave como espelho do tempo
Mais do que um processo eclesiástico, o conclave é um espelho da nossa civilização. Nele, assistimos a uma encenação ritual da escolha do sagrado, mas também da política, da diplomacia e da esperança humana por liderança e direção. O próximo Papa não herdará apenas uma tiara invisível, mas o desafio milenar de guiar corações, mentes e consciências num mundo cada vez mais fragmentado.
Como já disse o próprio Leandro Karnal, “a fé é uma das mais poderosas estruturas simbólicas que a humanidade criou”. E o conclave, com toda a sua solenidade e segredo, é uma das manifestações mais sofisticadas desse poder simbólico.