A trajetória e o apagamento literário de João do Rio, cronista da Belle Époque carioca, e o impacto de seu pioneirismo na cultura brasileira.
João do Rio (1881-1921), o brilhante cronista, jornalista e escritor que marcou a Belle Époque carioca, morreu jovem, vítima de um infarto fulminante, em 23 de junho de 1921.
Aos 39 anos, o homem que capturou o espírito vibrante e contraditório das ruas do Rio de Janeiro partiu deixando um legado impressionante, mas que, ao longo do tempo, foi amplamente negligenciado.
A pergunta que reverbera é: como um autor tão popular em vida caiu no esquecimento?
Este questionamento nos obriga a olhar para além da biografia, encarando as dinâmicas da exclusão literária e os preconceitos que atravessam a trajetória desse personagem fascinante.
Para compreender esse apagamento, é preciso considerar não apenas seu trabalho inovador, mas também o contexto social, cultural e histórico que o cercava.
Um Gênio das Ruas, Incompreendido pelo Tempo
João do Rio, cujo nome de batismo era Paulo Barreto, foi um cronista inovador, capaz de capturar as nuances e os personagens da cidade.
Em seu famoso livro A Alma Encantadora das Ruas (1908), João do Rio revelou o Rio de Janeiro por dentro, registrando suas contradições, costumes e religiões.
Foi o primeiro a dar voz a figuras marginalizadas, como os praticantes do candomblé e os sambistas. Isso em uma época em que falar dessas realidades era subversivo.
Porém, sua obra sempre esteve cercada de controvérsias. Seu pioneirismo o colocou na mira de preconceitos e críticas, tanto pessoais quanto profissionais.
João do Rio era visto como “um excêntrico”, alguém que desafiava as convenções da época. Sua aparência, personalidade e estilo de vida, muitas vezes associados à sua sexualidade e cor, foram alvo de chacotas e discriminações. A crítica que recebeu não se limitava ao conteúdo de seus textos, mas também à sua pessoa.
O Preconceito que Apagou sua Memória
Em sua curta trajetória, João do Rio enfrentou uma resistência constante, não só pelo teor de sua obra, mas também por ser pardo, homossexual e gordo.
O jornalista João Carlos Rodrigues descreve como o Barão do Rio Branco recusou a entrada de João do Rio no corpo diplomático por ele ser “gorducho e amulatado.”
Essas características físicas e identitárias foram amplamente ridicularizadas, inclusive por contemporâneos como Lima Barreto, que em sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha fez referências depreciativas ao cronista.
O preconceito de classe, racial e sexual, além da natureza pioneira de seus escritos, o colocaram em uma posição de outsider no cânone literário brasileiro. A crítica literária e os próprios colegas de profissão o marginalizaram, o que, com o tempo, culminou em sua exclusão dos currículos escolares e das discussões literárias mais amplas.
A crônica, gênero em que João do Rio se destacou, sempre foi considerada um gênero menor pela academia, o que também contribuiu para que sua obra fosse relegada ao esquecimento.
O Ostracismo Literário e o Resgate Tardio
João do Rio deixou um vasto acervo, com mais de 2,5 mil textos, entre crônicas, contos e romances, mas a ausência de herdeiros e defensores literários diretos, além do preconceito racial e sexual, contribuiu para que sua obra fosse ofuscada ao longo do tempo. Enquanto autores como Machado de Assis e Lima Barreto mantinham seu lugar no cânone literário, João do Rio era, aos poucos, esquecido.
Somente décadas mais tarde, sua importância começou a ser reconhecida, com a publicação de biografias e a reedição de suas obras. A primeira grande biografia de João do Rio veio em 1978, escrita por Raimundo Magalhães Júnior. Porém, o verdadeiro resgate de sua obra começou no século XXI, com novas edições de seus textos sendo publicadas por editoras como José Olympio, Carambaia e Bandeirola.
Sua presença na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2024 é um marco simbólico de seu retorno ao cenário literário. O que chama a atenção, como bem observou o crítico Fabiano Ormaneze, é que agora João do Rio está sendo lido por prazer, não por obrigação, o que talvez lhe garanta a merecida atenção de uma nova geração de leitores.
O Rio de Janeiro de João do Rio: Crônica da Modernidade
Apesar de ter sido marginalizado, João do Rio conseguiu imortalizar o Rio de Janeiro em suas crônicas. Seu olhar atento e sensível retratou a metrópole de uma maneira nunca antes vista. Ele foi um cronista da modernidade, fascinado pelo movimento, pela diversidade e pelas contradições da cidade.
João do Rio foi o primeiro jornalista a cobrir religiões não católicas, como o candomblé, em um tempo em que a prática de outras religiões era ilegal. Ele também foi pioneiro ao tratar do samba, um gênero marginalizado, mas que hoje é considerado um dos maiores símbolos da cultura brasileira. Sua abordagem jornalística inovadora, que combinava técnica e sensibilidade literária, é um dos motivos pelos quais é considerado um dos pais da crônica moderna.
Seu legado vai muito além da crônica. Ele representou uma ponte entre o jornalismo e a literatura, e suas obras mais literárias, como os romances Memórias de um Rato de Hotel e Pavor Dentro da Noite, também merecem destaque.
O Duelo com Lima Barreto
Entre os grandes acontecimentos de sua carreira, destaca-se sua candidatura à Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1910. Ele foi o primeiro negro a ocupar uma cadeira na ABL, e o primeiro a tomar posse vestindo o famoso fardão da academia. Essa conquista, porém, veio acompanhada de polêmicas, especialmente com Lima Barreto, que o atacou de maneira impiedosa, tanto por sua orientação sexual quanto por sua ascendência racial.
Essa disputa literária, no entanto, ilustra como as tensões e o racismo estrutural dentro do campo intelectual brasileiro contribuíram para a marginalização de escritores como João do Rio, cujas contribuições foram injustamente subestimadas por anos.
Um Legado Redescoberto
Cem anos após sua morte, João do Rio está finalmente sendo redescoberto. Sua obra, antes relegada ao esquecimento, é agora vista como uma contribuição fundamental para a literatura brasileira, e seu olhar sobre o Rio de Janeiro da Belle Époque continua a inspirar novos leitores e estudiosos. Seu pioneirismo na crônica, sua capacidade de ver o invisível e sua coragem de desafiar as normas sociais da época fazem de João do Rio uma figura atemporal, cuja obra merece ser amplamente celebrada.