Tragédia de Halloween em Bradford, 1858: envenenamento em massa com balas de hortelã levou a mortes, pânico e reformas na segurança alimentar no Reino Unido.
O Halloween, festa de doces e travessuras, é visto hoje com uma leveza quase universal, mesmo carregando em seu cerne um simbolismo do macabro e do mistério. No entanto, há 166 anos, em Bradford, na Inglaterra, a doçura do Halloween transformou-se em tragédia. O episódio, lembrado como o envenenamento das balas de hortelã em 31 de outubro de 1858, abalou profundamente a pequena cidade britânica e lançou questionamentos sobre a fragilidade das práticas comerciais da época. Em uma época em que a produção de alimentos ainda carecia de fiscalização rigorosa, as escolhas cotidianas de comerciantes poderiam facilmente transformar-se em veneno.
A tragédia teve início quando William Hardacre, dono de uma barraca de doces no mercado de Bradford é conhecido como “Humbug Billy”, adquiriu cerca de cinco quilos de balas de hortelã para vender em sua banca. Ciente do produto com aparência suspeita, Hardacre negociou um desconto com Joseph Neal, o confeiteiro local. Ele sabia que o tom das balas não era o usual, mas o desconto, que lhe economizaria meio centavo por quilo, falou mais alto do que a suspeita. Naquele tempo, a prática de adulterar produtos era comum e, para reduzir custos, Neal substituía o açúcar caro por um pó de gesso. Contudo, uma cadeia de erros e desinformações nas farmácias de Bradford introduziu, de forma trágica, um elemento mortal no lote de doces: arsênico puro.
A venda das balas de hortelã aconteceu sob os olhares despreocupados de pais, mães e crianças, que, em celebração ao Halloween, compravam os doces sem saber do perigo letal que carregavam. Em pouco tempo, crianças começaram a exibir sintomas graves de envenenamento, levando a cidade a um surto de pânico. Foi apenas quando o médico John Henry Bell atendeu duas crianças falecidas e encontrou vestígios de balas de hortelã próximas que a suspeita recaiu sobre os doces vendidos por Humbug Billy.
A análise do químico Felix Marsh Rimmington confirmou o pior: cada bala continha uma dose de arsênico quatro vezes acima do que poderia ser letal. Nesse ponto, a cidade de Bradford mergulhou em um estado de alarme coletivo. A polícia, em uma tentativa desesperada de controlar os danos, alertou a população nas ruas e fixou avisos nos postes e praças, enquanto se deparava com um número crescente de mortos. Ao final, 20 pessoas, muitas delas crianças, perderam a vida, e aproximadamente 200 pessoas adoeceram gravemente. Esse evento foi descrito pelos jornais como “a tragédia mais terrível que já se abateu sobre o distrito”.
É interessante observar como o horror não se limitou ao efeito imediato, mas ecoou pela sociedade, levando o Reino Unido a repensar suas práticas legais e comerciais. O caso expôs a falta de regulamentação e o descaso com a segurança da população, especialmente das classes trabalhadoras, que, vivendo em um contexto industrial de alta demanda e baixo custo, tornaram-se alvos de uma produção cada vez mais insalubre e negligente.
Esse evento em Bradford serviu como catalisador para uma legislação mais rígida, culminando na Lei das Farmácias de 1868, que restringia a venda de produtos tóxicos a profissionais qualificados e exigia rótulos claros para substâncias venenosas. No entanto, leis de proteção contra adulteração de alimentos só foram implementadas em 1875, após reiterados alertas de químicos como Friedrich Accum. Accum, que já em 1820 publicará “Death in the Pot” (Morte na Panela), apontava para a presença de substâncias adulterantes nos alimentos cotidianos.
De maneira fascinante, essa história revela muito sobre as transformações sociais da Revolução Industrial. Em uma sociedade que se urbanizou a passos largos, a produção artesanal e as trocas diretas foram gradualmente substituídas pela produção em massa, em que o contato pessoal com o produtor se perdeu, e o lucro passou a ditar práticas frequentemente desumanas. Com o crescimento das cidades e o aumento do consumo, a vigilância sobre o que se ingeria diminuiu, criando condições propícias para tragédias como a que devastou Bradford.
No final, nenhuma condenação formal foi emitida. Humbug Billy, o comerciante que, ao lado dos consumidores, também havia consumido as balas envenenadas, sofreu graves sequelas físicas, mas foi liberado de qualquer acusação criminal. O aprendiz de farmácia, William Goddard, assim como o farmacêutico Charles Hodgson e o confeiteiro Neal, enfrentaram brevemente a justiça, mas o júri considerou que a venda do arsênico fora um erro. E, ao invés de culpabilizar diretamente os envolvidos, o episódio resultou em um apelo coletivo por reformas e maior transparência no setor.
A ironia triste e poderosa do caso Bradford reside na fragilidade da vida em um contexto de negligência industrial, e na vulnerabilidade do consumidor frente às práticas de adulteração de produtos que proliferaram com o avanço do capitalismo industrial. Leis de regulamentação surgiram e, hoje, é quase inconcebível imaginar tamanha negligência na manipulação de substâncias tóxicas. Porém, Bradford serve como um lembrete histórico: onde há pressão por lucro e descaso com a segurança, há sempre potencial para repetição de tragédias. O Halloween, data marcada pela doçura e pelas travessuras, revelou-se, naquela fatídica noite de 1858, uma narrativa sombria sobre os limites do controle social sobre a qualidade dos produtos que consumimos.