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Leitura de História

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O impacto de Carmela Dutra na proibição dos jogos de azar no Brasil.

Carmela Dutra, primeira-dama religiosa, influenciou a proibição dos cassinos no Brasil, marcando uma era de mudanças políticas e sociais.

No Brasil desde meados do século XX, os jogos de azar eram parte integrante da vida social e cultural, especialmente nas grandes cidades como o Rio de Janeiro e em destinos turísticos importantes como Poços de Caldas e Petrópolis. O entretenimento oferecido pelos cassinos, especialmente durante os anos de 1934 a 1946, atraiu grandes multidões e proporcionou espetáculos memoráveis, com artistas do calibre de Carmen Miranda se apresentando nos palcos iluminados dessas casas de jogo. Entretanto, por trás das luzes brilhantes e da exuberância, havia uma tensão moral crescente, impulsionada por uma oposição conservadora cada vez mais influente. No centro dessa oposição estava Carmela Dutra, esposa do então presidente Eurico Gaspar Dutra, uma figura que, de maneira implícita ou explícita, moldou o destino do jogo no Brasil.

A decisão de proibir os jogos de azar no país, decretada pelo presidente Dutra em 30 de abril de 1946, é até hoje considerada um marco importante na legislação brasileira. Embora diversos fatores tenham contribuído para essa decisão, a influência de Carmela Dutra, conhecida como “Dona Santinha” por sua fervorosa religiosidade, é constantemente citada como fundamental. “Considerando que a tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar” — assim iniciava o decreto assinado por Dutra, o que, para muitos, reflete claramente os valores defendidos pela primeira-dama.

A proibição veio em um momento no qual o Brasil estava experimentando uma modernização cultural e econômica. Cassinos não eram apenas lugares de jogo, mas sim centros de cultura e entretenimento, responsáveis por impulsionar setores como o turismo, a música e até mesmo a arquitetura, com hoteis luxuosos como o Copacabana Palace e o Quitandinha se destacando pela grandiosidade de seus eventos. Contudo, enquanto muitos celebravam o glamour e a economia que esses empreendimentos traziam, figuras como Carmela Dutra viam nos cassinos um “câncer moral” que corroía os valores familiares e religiosos.

É aqui que a figura de Carmela se torna particularmente intrigante. Nascida na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, e casada com Eurico Gaspar Dutra em seu segundo matrimônio, Carmela já possuía uma sólida reputação entre os círculos conservadores católicos antes de assumir o papel de primeira-dama. Sua participação ativa na Liga Eleitoral Católica (LEC) e seu engajamento com movimentos religiosos que promoviam a “recristianização” do país reforçavam sua imagem como uma mulher de fé inabalável. Sob sua influência, acredita-se que muitos dos valores cristãos que ela defendia foram incorporados na agenda política de seu marido.

Entretanto, o papel de Carmela na proibição dos jogos de azar sempre esteve cercado de mistério e especulação. Documentos que comprovem sua influência direta sobre a decisão de Dutra são escassos. Historiadores como Fábio Souza Lima, da Universidade Federal do Amazonas, apontam que não há um registro oficial que prove a participação de Santinha nesse processo, mas há diversos indícios que sugerem sua influência. Um exemplo disso é a proximidade dela com o cardeal Jaime Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, um dos principais defensores da moral católica no Brasil da época e um crítico ferrenho dos cassinos.

Outro fato curioso revelado pela pesquisa de Lima é a relação de Carmela Dutra com o então presidente Getúlio Vargas. Fotografias da época mostram que, em diversos eventos sociais, Carmela se posicionava ao lado de Vargas, muitas vezes mais próxima dele do que o próprio Eurico Gaspar Dutra, que na época era Ministro da Guerra. Isso sugere que, apesar de sua discrição pública, Carmela possuía uma influência significativa nos círculos do poder.

O poder dessa influência extrapola as fronteiras do Brasil. Em 1942, o Federal Bureau of Investigation (FBI) dos Estados Unidos redigiu um relatório no qual expressava preocupação com as supostas simpatias nazistas de Carmela Dutra. O documento, assinado pelo então diretor do FBI, J. Edgar Hoover, afirmava que Carmela poderia estar tentando influenciar membros da alta sociedade brasileira a adotar posturas pró-nazistas, uma acusação séria em um contexto de guerra mundial. Embora essas alegações nunca tenham sido comprovadas, o documento reflete como a primeira-dama era vista como uma figura de peso, capaz de moldar, para o bem ou para o mal, os rumos do Brasil.

Esse conjunto de elementos – sua religiosidade, suas conexões políticas e sua possível inclinação ideológica – pintam o retrato de uma mulher complexa, cujo impacto no país vai além da sua postura piedosa e reservada. Enquanto a história oficial muitas vezes relegou Carmela Dutra à sombra do poder, sua influência nas decisões políticas e sociais da época, especialmente na proibição dos jogos de azar, continua a ser objeto de debate e estudo.

O que também não pode ser ignorado são as consequências dessa proibição. O fechamento dos cassinos deixou aproximadamente 60 mil pessoas desempregadas, afetando uma cadeia produtiva que incluía desde artistas até trabalhadores dos serviços hoteleiros e de manutenção. Além disso, o fim da jogatina legalizada no Brasil abriu espaço para que outras modalidades de jogo, como o jogo do bicho e, posteriormente, o bingo, passassem a ocupar a lacuna deixada pelos cassinos, muitas vezes de forma clandestina.

O projeto de lei que atualmente tramita no Senado, buscando novamente legalizar os jogos de azar, reacende o debate sobre os impactos morais e econômicos dessa prática no Brasil. Em um país onde a religiosidade ainda é uma força cultural significativa, o legado de figuras como Carmela Dutra permanece como um ponto de referência importante. Seu apelido, “Santinha”, é ao mesmo tempo uma representação de sua devoção  uma marca de sua influência moral sobre o Brasil de sua época.

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