Sobrenomes contam histórias. São marcas de origem, heranças de tradição e, em alguns casos, símbolos de poder. Mais do que meros complementos ao nome de batismo, eles carregam vestígios de um passado que se reflete no presente.
Mas há algo ainda mais fascinante: os sobrenomes não são estáticos. Eles evoluem, desaparecem e, às vezes, ressurgem com nova força. O que isso nos diz sobre a sociedade e suas transformações?
Tomemos como exemplo os diretores indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. Cinco homens, de continentes distintos, carregam em seus nomes não apenas suas identidades, mas fragmentos da história de suas nações.
Entre os indicados estão o francês Jacques Paul Jean Audiard (Emilia Pérez), o letão Gints Zilbalodis (Flow), o sueco Magnus von Horn (A Garota da Agulha, representando a Dinamarca), o iraniano Mohammad Rasoulof (A Semente do Fruto Sagrado, representando a Alemanha) e o brasileiro Walter Moreira Salles Júnior (Ainda Estou Aqui).
Walter Salles, como é mais conhecido, é o único da lista com um sobrenome composto. Seu nome remete à dinastia Moreira Salles, uma das mais ricas do Brasil, cuja influência atravessa gerações. O peso do sobrenome não é casual: ele simboliza um passado de riqueza construída nos setores bancário e industrial.
A relação entre sobrenomes compostos e poder não é nova. De Almeida Prado a Monteiro de Carvalho, de Souza Aranha a Cavalcanti de Albuquerque, a repetição de certos nomes ao longo da história reforça a percepção de que eles pertencem a famílias tradicionais e influentes. Mas de onde vem essa prática?
Sobrenomes compostos e a herança aristocrática
“Sociedades atualmente democráticas foram, na maior parte de sua constituição histórica, aristocráticas e monárquicas”, explica o historiador e genealogista Bruno Antunes de Cerqueira. A distinção entre classes sociais se manifestava em títulos de nobreza e, consequentemente, nos sobrenomes.
Na Europa, os sobrenomes compostos frequentemente indicavam posses de terras, alianças políticas e linhagens nobres. Basta lembrar de famílias como Bragança e Bourbon, ou dos Medici-Riccardi, cujo nome unia duas poderosas dinastias italianas.
Com o tempo, no entanto, a prática se estendeu para além da nobreza. Em Portugal e na Espanha, tornou-se comum que filhos herdam os sobrenomes tanto do pai quanto da mãe, refletindo a junção de linhagens familiares. Esse costume foi levado para colônias como o Brasil, onde perdura até hoje.
O formato, no entanto, não é universal. Em países como a Itália, até recentemente, os filhos recebiam apenas o sobrenome paterno — resquício de uma tradição do Império Romano que só começou a mudar nos últimos anos.
Essa rigidez, aliás, já causou disputas. Em 2016, uma brasileira casada com um italiano precisou lutar na Justiça pelo direito de registrar o sobrenome materno em seu filho. Uma pequena batalha dentro de um longo embate histórico.
A origem dos sobrenomes e suas transformações
Os sobrenomes surgiram por uma necessidade prática: diferenciar as pessoas. Durante a Idade Média, era comum que as pessoas tivessem apenas um nome próprio, seguido por um identificador adicional baseado em características físicas, ocupação ou local de origem.
Essa tradição pode ser vista até hoje em nomes como Smith ou Schmidt (“ferreiro”), Baker (“padeiro”), Blanco (“branco”) e Long (“alto”). No caso dos patronímicos — sobrenomes derivados do nome do pai — os padrões variam conforme o idioma:
- Em português, o sufixo “-es” indica descendência, como em Gonçalves (“filho de Gonçalo”).
- Em espanhol, a terminação “-ez” segue a mesma lógica, como em Martínez (“filho de Martín”).
- Em inglês, o sufixo “-son” cumpre esse papel, como em Johnson (“filho de John”).
- Em russo, Ivanov significa “filho de Ivan”.
- No árabe, os prefixos “ibn” e “ben” têm o mesmo significado, assim como “Mac” ou “Mc” no gaélico escocês e irlandês.
Com o tempo, muitos desses nomes deixaram de ter um significado literal e passaram a se fixar como sobrenomes permanentes.
No Brasil, por exemplo, o Silva se tornou o sobrenome mais comum, mas sua origem é incerta. Segundo o Dicionário das Famílias Brasileiras, o nome teria surgido na Roma Antiga para designar pessoas oriundas de florestas (silva, em latim). A popularidade do nome cresceu na colonização, muitas vezes adotado por portugueses que desejavam anonimato ou imposto a pessoas escravizadas.
A influência da Igreja e a padronização dos sobrenomes
A hereditariedade, algo que consideramos essencial nos sobrenomes hoje, nem sempre foi uma regra fixa.
Durante séculos, não era incomum que irmãos tivessem sobrenomes distintos. A Igreja Católica, no entanto, teve um papel decisivo na padronização dos registros, especialmente a partir da Inquisição.
A imposição de sobrenomes compostos ajudava a rastrear ancestrais e identificar origens “impuras” — conceito usado para perseguir descendentes de judeus e muçulmanos. Além disso, carregar o nome da mãe podia servir para diferenciar indivíduos em sociedades com pouca variedade de nomes.
Foi apenas entre os séculos 18 e 19 que os sobrenomes hereditários se consolidaram como uma prática universal. Com o avanço do Estado sobre o registro civil, os sobrenomes passaram a seguir regras mais rígidas, muitas delas em vigor até hoje.
Mulheres e a mudança de sobrenome: tradição ou imposição?
Outro aspecto fascinante dos sobrenomes é a tradição de as mulheres adotarem o nome do marido ao casar — algo que não era uma prática comum em toda a Europa até o século 14.
Na Inglaterra medieval, advogados criaram uma regra segundo a qual o casamento significava a transferência de todos os bens da esposa para o marido. O sobrenome da mulher era trocado pelo do esposo como um símbolo dessa posse.
Esse costume se espalhou e, no Brasil, tornou-se obrigatório com o Código Civil de 1916. Somente em 1977, com a Lei do Divórcio, as mulheres passaram a ter o direito de manter seus sobrenomes.
Curiosamente, desde 2002, maridos também podem adotar o sobrenome da esposa. Na prática, no entanto, essa opção ainda é pouco utilizada.
Sobrenomes como legado e status social
Os sobrenomes podem desaparecer, mas também podem ganhar novo prestígio. Quando um nome se torna sinônimo de sucesso ou influência, ele se transforma em um legado.
O jurista Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923), por exemplo, foi tão marcante na história brasileira que Ruy Barbosa acabou virando um sobrenome adotado por descendentes.
O mesmo ocorreu com os Moreira Salles: um nome que surgiu no interior de Minas Gerais no século 19, mas que, com a ascensão de seus portadores, passou a simbolizar poder e tradição.
Seja como marca de nobreza, identidade ou resistência, os sobrenomes continuam a narrar a história da sociedade. E, enquanto o mundo muda, eles também evoluem — carregando consigo os ecos do passado e os traços de um futuro em constante transformação.