Leitura de História

O renascimento do maná: história e tradição na Sicília

Nas montanhas Madonie, na ensolarada Sicília, onde o tempo parece caminhar ao ritmo das cigarras e das sombras projetadas pelos freixos, uma antiga prática ressurge com o vigor dos que se recusam a esquecer. Em um campo verdejante banhado pela luz dourada da manhã, Giulio Gelardi – agricultor, guardião da memória e, por que não, visionário – aponta para a casca de uma árvore com o entusiasmo de quem revela um segredo ancestral: “Este é o famoso maná.”

Assim começa nossa jornada por um território onde natureza, história e espiritualidade se entrelaçam. A seiva branca e espessa que escorre pela casca das árvores do gênero Fraxinus ornus não é apenas um líquido viscoso. Trata-se de um símbolo de continuidade, um elo entre o passado bíblico e o presente gastronômico, entre a escassez do deserto e a abundância da tradição mediterrânea.

Maná: do céu ao tronco

A palavra “maná” desperta em muitos uma associação imediata com o episódio bíblico do Êxodo. Segundo as escrituras, era um alimento que caía do céu para alimentar os israelitas em sua travessia pelo deserto. A descrição é poética: flocos finos, semelhantes à geada. Ainda que estudiosos debatam a substância exata à qual o texto se refere, há uma semelhança intrigante com o maná extraído dos freixos sicilianos – uma resina doce e rica em minerais que, ao longo dos séculos, sustentou populações e inspirou mitos.

É precisamente na região das Madonie, a cerca de 65 quilômetros de Palermo, que essa seiva encontra seu berço moderno. O Parque Natural Madonie, com seus 40 mil hectares de vegetação exuberante, abriga há mais de mil anos a prática da colheita do maná. Documentos históricos indicam que a extração já ocorria no século IX, durante o domínio árabe na Sicília.

Durante o Renascimento, esse “ouro branco” era colhido com destreza e vendido nos portos mediterrâneos como remédio e adoçante. Tamanha era sua relevância econômica que, no século XVI, o Reino de Nápoles decidiu tributar o produto, reconhecendo sua lucratividade.

A decadência e o esquecimento

Entretanto, como tantos outros capítulos da história, o esplendor do maná foi sendo ofuscado pelas transformações modernas. Até a Segunda Guerra Mundial, a resina ainda era uma importante fonte de renda para muitas famílias sicilianas. Seu principal derivado, o manitol – um álcool de açúcar com propriedades medicinais –, era amplamente utilizado por indústrias farmacêuticas.

Mas o advento da síntese química e a urbanização acelerada sepultaram lentamente a tradição. A colheita do maná, passada de pais para filhos ao longo de gerações, foi sendo esquecida, relegada à memória de poucos anciãos.

A memória como ato de resistência

É nesse cenário de abandono que ressurge a figura de Giulio Gelardi, retornando à sua terra natal, Pollina, em 1985. A cidade medieval, esculpida nas pedras calcárias como se tivesse nascido da própria montanha, abrigava então menos de uma centena de pessoas que ainda sabiam extrair o maná. “Quando eu era criança, todos sabiam fazer isso”, conta Gelardi. Ao ver o desaparecimento da prática, decidiu agir.

O renascimento do maná começou silenciosamente. Primeiro, ouvindo. Depois, observando. Gelardi passou a visitar os mais velhos, absorver seus conhecimentos e estudar documentos antigos em bibliotecas. Descobriu que o maná era mais do que um adoçante: era remédio, cultura e identidade.

Na extração, cada detalhe importa. O momento certo para cortar a casca, por exemplo, exige mais do que técnica – requer sensibilidade. Folhas que perdem a tonalidade, rachaduras no solo, o comportamento da planta: tudo comunica. Como um maestro atento aos sinais da orquestra vegetal, Gelardi aprendeu a “ouvir” as árvores.

Tradição e inovação: um equilíbrio delicado

Aos poucos, o entusiasmo de Gelardi começou a contagiar. Na década de 1990, turistas encantados com a história começaram a participar de tours organizados por ele. O maná, que antes parecia condenado ao esquecimento, ganhava nova vida.

Mas não bastava apenas preservar: era preciso adaptar. Com engenhosidade, Gelardi desenvolveu um método de “maná limpo”, usando bicos de alumínio e linhas de pesca para evitar o contato com o tronco e reduzir o risco de contaminação. A inovação dobrou a produção e abriu portas para a comercialização do produto em grande escala.

Gastronomia, saúde e cosmética

O maná passou a interessar não apenas aos estudiosos e historiadores, mas também aos chefs, confeiteiros e farmacêuticos. Em Castelbuono, vila próxima a Pollina, o ingrediente virou protagonista de pratos sofisticados. No restaurante Hostaria Cycas, o chef Giuseppe Zingales incorporou o maná em risotos e pratos com carne suína, criando combinações que surpreendem o paladar com um delicado equilíbrio entre doce e salgado.

No Ristorante Nangalarruni, Peppe Carollo e sua filha Francesca usam o maná para cobrir leitões assados, criando uma harmonia de sabores com amêndoas e pistache. “O segredo está na medida”, explica Francesca. “Um toque é suficiente para elevar o prato.”

Na confeitaria, o maná se tornou ingrediente cobiçado. O renomado chef Nicola Fiasconaro passou a utilizá-lo em panetones especiais. Davide Oldani, premiado com estrela Michelin, o introduziu em seu cardápio em forma de palitos cobertos de chocolate.

Além da culinária, o maná conquistou espaço na indústria cosmética. Empresas como Biotherm e Yves Rocher empregam a substância em hidratantes, graças às suas propriedades suavizantes e remineralizantes. Composto por manitol e minerais como potássio, cálcio e magnésio, o maná é um suplemento natural que pode beneficiar pessoas com dietas restritivas, como diabéticos.

A perpetuação de um legado

Em 2002, o maná das Madonie foi reconhecido pela organização Slow Food como produto de interesse cultural e ecológico. Em 2015, nasceu o Consórcio de Maná das Madonie, fundado por Gelardi e outros produtores, para preservar a prática, comercializar seus derivados e formar as novas gerações.

Mais do que uma simples resina, o maná tornou-se símbolo de resistência cultural, de reconciliação com a terra e de valorização da sabedoria ancestral. Em uma época marcada pela aceleração e pelo descarte, a história do maná nos convida a desacelerar, a ouvir, a tocar – literalmente – as raízes do que somos.

Nas palavras de Gelardi, “a colheita do maná não pode ser aprendida com um livro. É preciso sentir. É preciso viver”. E, talvez, esse seja o maior ensinamento: que há saberes que só sobrevivem se forem partilhados, não como informação, mas como experiência.