Por décadas, Roberto Carlos foi visto como um artista que pairava acima das tensões políticas que marcaram a história do Brasil no século XX. Enquanto figuras como Caetano Veloso e Gilberto Gil foram exiladas e Chico Buarque enfrentou diversos embates com a censura, Roberto seguiu seu caminho musical sem se colocar explicitamente contra o regime militar. Essa postura levou a uma interpretação recorrente: a de que o “Rei” seria um artista alienado, alguém que, se não endossava o regime, tampouco representava uma ameaça.
No entanto, essa percepção tem sido revisitada nos últimos anos, especialmente com a recente repercussão do filme Ainda Estou Aqui, que lançou luz sobre aspectos pouco lembrados da obra do cantor. O longa incorpora canções associadas a Roberto Carlos em momentos-chave, resgatando um capítulo de sua trajetória que sugere uma relação mais complexa entre sua música e o contexto político do Brasil. A escolha dessas músicas não foi aleatória, como aponta o jornalista Júlio Ettore em um vídeo analítico. Segundo ele, os temas explorados nessas canções carregam um simbolismo que vai além do que se percebe à primeira audição.
A canção de Roberto Carlos (sem Erasmo)
Uma das músicas mais emblemáticas utilizadas no filme é “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, lançada em 1971 no álbum Carlos, Erasmo. De sonoridade marcante e letra sugestiva, a faixa reflete a atmosfera de incerteza que pairava sobre o Brasil naquele momento. O cineasta Walter Salles destacou a importância dessa escolha em entrevista à revista Noize, afirmando que “as músicas que você ouviu definiram você, ao contrário do que acontece hoje, quando os algoritmos definem o que você vai ouvir”. Assim, a inserção dessa faixa no filme contribui para a carga emocional da narrativa e reforça seu impacto simbólico.
O que poucos sabem, no entanto, é que essa canção, diferentemente de grande parte do repertório da dupla, foi composta inteiramente por Roberto Carlos, sem a participação de Erasmo. Em um raro depoimento, Roberto revelou que a inspiração para a música surgiu de uma conversa entre os dois sobre o Brasil daquele tempo. “Numa noite em que Erasmo e eu estávamos compondo, começamos a falar de questões em geral do Brasil, e eu disse: ‘é preciso dar um jeito’. Ele repetiu a frase e então eu disse: ‘isso pode ser tema de uma música nossa’.” Assim, nasceu uma composição que refletia inquietação social, mas com a subjetividade necessária para contornar a censura imposta pelo regime militar.
A transição artística de Erasmo Carlos
Se Roberto Carlos sempre manteve sua postura discreta diante da política, Erasmo Carlos passou por uma transformação mais perceptível. Conhecido por sua associação com a Jovem Guarda — movimento frequentemente criticado por sua aparente alienação e foco na cultura pop —, Erasmo assumiu um tom mais sério e engajado a partir do álbum que continha É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo. Em entrevistas da época, ele próprio reconhecia essa mudança: “Na Jovem Guarda, a gente era muito alienado. A gente estava deslumbrado com o dinheiro que ganhava, comprando as coisas que queria comprar. Agora é época de consciência.”
Essa guinada foi refletida tanto nas letras quanto na sonoridade do disco, que contou com a participação de músicos como Liminha e Dinho, da formação clássica dos Mutantes, além do guitarrista Lanny Gordin, um dos responsáveis pela fusão entre rock e MPB no Brasil.
Roberto Carlos: alienado ou consciente à sua maneira?
Mesmo que Roberto Carlos não tenha se posicionado de forma combativa contra a ditadura, isso não significa que sua obra estivesse totalmente alheia à realidade do período. Um exemplo claro disso é Debaixo dos Caracois dos Teus Cabelos, composta em 1971 como uma homenagem velada a Caetano Veloso, que estava exilado em Londres. O tom melancólico e a letra carregada de saudade refletem a dor da ausência e a sensação de deslocamento vivida por muitos artistas naquele período.
Além disso, outra música emblemática aparece em Ainda Estou Aqui: Como Dois e Dois, composta por Caetano Veloso e gravada por Roberto Carlos no mesmo ano. No filme, ela é utilizada em um momento de grande tensão, quando Eunice, esposa do deputado Rubens Paiva (interpretada por Fernanda Torres), aumenta o volume da rádio para mudar de assunto quando uma das filhas questiona o paradeiro do pai, desaparecido pela repressão do regime.
Essa cena gerou interpretações diversas. Para alguns, reforça a imagem de Roberto como um cantor “alienado”, cuja música servia como trilha sonora para aqueles que queriam ignorar os acontecimentos políticos. No entanto, Caetano Veloso, o autor da canção, vê a questão de outra forma. Em uma entrevista, ele explicou que fez a música pensando especialmente em Roberto Carlos:
“Fiz essa canção para Roberto Carlos e pensando em Roberto Carlos. Eu queria ouvi-lo dizendo aquelas coisas, embora com uma letra enigmática, como dois e dois é o Roberto mesmo no momento da ditadura, e ele podendo ser uma afirmação do Brasil. Era o modo de ele explicitar o compromisso real dele. E era enigmático porque estava para além dos compromissos que queriam que Pelé e ele assumissem de tomar atitudes da esquerda convencional, o que eu sempre achei uma estupidez.”
A fala de Caetano revela um ponto importante: enquanto muitos esperavam um engajamento direto de Roberto Carlos, ele encontrou outros caminhos para expressar sua visão de mundo. Se sua música não confrontava explicitamente o regime, isso não significa que fosse desprovida de significados e mensagens sutis.
Um novo olhar sobre a obra de Roberto Carlos
O filme Ainda Estou Aqui reabre um debate interessante sobre a música brasileira e seu papel na construção da memória política do país. Erasmo Carlos, que faleceu em 2022, não chegou a ver o impacto do filme sobre a percepção pública dessas canções. Já Roberto Carlos continua sendo alvo de interpretações divergentes: teria ele se mantido distante da realidade ou encontrado, na sutileza de suas composições, um meio de dizer mais do que aparentava?
A história da música brasileira muitas vezes é contada a partir dos artistas que desafiaram abertamente o regime, mas talvez seja o momento de reconhecer que há múltiplas formas de resistência. O silêncio pode ser uma escolha, mas a música sempre fala — mesmo quando parece apenas sussurrar.