Leitura de História

Tiroteios em Kent State: o dia em que a América perdeu a inocência

Cinquenta e quatro anos depois, o massacre de Kent State ainda provoca calafrios e deixa marcas profundas na memória coletiva americana. Em 4 de maio de 1970, o campus da Universidade Estadual de Kent, em Ohio, transformou-se num cenário de guerra. Quatro estudantes foram mortos a tiros pela Guarda Nacional de Ohio durante um protesto contra a Guerra do Vietnã, num episódio que se tornou símbolo das divisões culturais e políticas nos Estados Unidos.

Esse acontecimento, imortalizado pela canção “Ohio” de Crosby, Stills, Nash & Young, não foi apenas uma tragédia local; foi um divisor de águas. O massacre de Kent State revelou o colapso da confiança entre o governo e seus jovens cidadãos, incendiando uma geração já inflamável. Mas, para entender o impacto real desse dia fatídico, é preciso mergulhar na conjuntura social e política da época.

O Contexto Explosivo de 1970

A década de 1970 foi um caldo cultural efervescente. Os Estados Unidos estavam atolados numa guerra impopular no Vietnã, enquanto dentro de suas fronteiras a tensão fervia. O presidente Richard Nixon, eleito dois anos antes com a promessa de restaurar a lei e a ordem, havia intensificado a guerra ao anunciar, em abril de 1970, a invasão do Camboja. Para muitos jovens americanos, isso foi a gota d’água.

No campus de Kent State, a reação foi rápida. No dia 1º de maio, estudantes organizaram um protesto pacífico. Mas o clima de revolta escalou rapidamente. Naquela noite, o centro da cidade de Kent virou palco de confrontos entre jovens e a polícia local. Algumas lojas foram saqueadas, e o prefeito da cidade, pressionado, pediu a intervenção da Guarda Nacional de Ohio.

No dia seguinte, a situação já estava fora de controle. Tropas da Guarda Nacional ocupavam o campus, enquanto o clima de tensão atingia níveis insuportáveis.

O Dia da Tragédia

Na manhã de 4 de maio, cerca de três mil pessoas se reuniram no campus, desafiando a proibição de manifestações imposta pela universidade. Às 12h24, tudo mudou. Após uma série de confrontos e o disparo de gás lacrimogêneo, os guardas nacionais abriram fogo. Foram 13 segundos de tiros. No chão, quatro corpos sem vida: Allison Krause, Jeffrey Miller, Sandra Scheuer e William Schroeder. Outros nove estudantes ficaram feridos.

O que chocou ainda mais foi o fato de dois dos mortos nem sequer participarem do protesto. Sandra Scheuer, por exemplo, estava apenas a caminho de uma aula. Por que atirar? Por que balas reais contra jovens desarmados? As perguntas ecoavam pelos Estados Unidos, alimentando protestos em mais de 450 universidades.

A Reação Nacional

A fotografia icônica de John Filo, mostrando uma jovem ajoelhada ao lado do corpo de Jeffrey Miller, foi capa de jornais pelo mundo todo. O choque foi imediato. Os estudantes organizaram a maior greve estudantil da história americana, paralisando centenas de campi.

Enquanto isso, a resposta das autoridades foi… ambígua, para dizer o mínimo. O presidente Nixon referiu-se aos manifestantes como “baderneiros” e destacou o apoio da chamada “maioria silenciosa”, que via os jovens contestadores como ameaças à ordem social.

Na pequena cidade de Kent, a opinião pública estava dividida. Muitos moradores, como o mecânico Pete Selman, acreditavam que os estudantes “tinham pedido por isso”. “Eles não deveriam estar lá… Claro que foi triste, mas estavam provocando há dias”, disse ele em uma entrevista à BBC meses depois.

Mas, entre os próprios estudantes, a visão era bem diferente. Para eles, a violência da Guarda Nacional era a prova definitiva de que o governo havia se tornado um regime opressor, incapaz de tolerar a dissidência.

Divisões Geracionais e Políticas

O massacre de Kent State foi um espelho cruel de um país dividido. De um lado, uma geração jovem, crítica e desiludida, que rejeitava o sonho americano tradicional — a casa cercada de um gramado bem cuidado e a segurança de um emprego estável. Do outro, uma maioria conservadora, para quem os manifestantes eram ingratos que cuspiam nos valores que lhes haviam sido dados de bandeja.

Essa divisão foi capturada em depoimentos de estudantes entrevistados pela BBC na época. Um deles, ao ser questionado sobre o ódio que os trabalhadores sentiam pelos manifestantes, respondeu: “Eles são vítimas de um sistema de propaganda. Os jornais que leem, a TV que assiste… tudo reforça uma visão unilateral. Qualquer ideia nova é automaticamente rotulada como comunista ou radical.”

Impunidade e Legado

Os tiroteios de Kent State foram investigados por diversas comissões, mas ninguém jamais foi condenado pelas mortes. Nenhum soldado foi acusado formalmente, nenhum oficial foi responsabilizado. A sensação de impunidade aprofundou ainda mais a desconfiança entre a juventude e as autoridades.

Mas o legado dos eventos de 4 de maio foi duradouro. Kent State tornou-se símbolo da resistência e da luta por justiça. A canção “Ohio”, escrita por Neil Young apenas dias após o massacre, tornou-se o hino de uma geração revoltada. A frase “Four dead in Ohio” virou um mantra de protesto.

Como bem pontua o historiador Howard Zinn em A People’s History of the United States, o massacre de Kent State foi o momento em que “o verniz de civilidade das autoridades americanas rachou, expondo uma violência latente que muitos preferiam ignorar”.

Kent State continua a ressoar como um lembrete sombrio dos perigos da militarização e da repressão. Em tempos de crescente tensão política, talvez a pergunta feita por estudantes chorando naquele dia de 1970 ainda mereça ser ouvida: por quê?

 

Referências

  • Zinn, Howard. A People’s History of the United States. New York: HarperCollins, 1980.
  • Heineman, Kenneth J. Campus Wars: The Peace Movement at American State Universities in the Vietnam Era. New York University Press, 1993.
  • Filo, John. Kent State: Death and Dissent in the Long Sixties. Boston: Beacon Press, 2000.