O corpo de um homem diz muito — não apenas em vida, mas, tragicamente, também na morte. No caso do escocês Donnie MacRae, o silêncio de sua tumba escondeu por mais de 80 anos um fato inquietante: ao ser enterrado durante a Segunda Guerra Mundial, parte essencial de seu corpo — o cérebro e a medula espinhal — não estavam com ele.
A história que a seguir se desvela, permeada de dor, silêncio institucional e um esforço tardio por justiça histórica, nos convida a refletir sobre os limites éticos da ciência, as cicatrizes invisíveis das guerras e, sobretudo, o respeito devido aos mortos. Trata-se não apenas de um episódio individual, mas de um espelho da complexidade moral do século XX — um século em que o conhecimento, muitas vezes, caminhou de mãos dadas com a barbárie.
O jovem gaélico e a guerra
Donnie MacRae nasceu em Gairloch, na costa oeste da Escócia, um lugar onde o mar se mistura à tradição e à música. Ele cresceu falando gaélico, uma língua que carrega séculos de resistência cultural. Em sua família, o som da gaita de foles era quase um membro extra, e todos sabiam costurar com precisão: Donnie era alfaiate. Tinha planos simples e belos — abrir um negócio próprio em Blair Atholl, onde seu irmão trabalhava como motorista de hotel.
Mas em 1939, quando a sombra do nazismo já se estendia sobre a Europa, Donnie alistou-se no Exército Territorial. Era o dever do cidadão. Servia no regimento dos Seaforth Highlanders e foi capturado na batalha de St. Valery, na França, em junho de 1940 — um episódio marcante da queda britânica frente ao avanço alemão. No ano seguinte, morreu como prisioneiro de guerra, aos 33 anos, em um hospital militar alemão.
Uma doença rara e um destino incomum
Durante sua prisão, Donnie começou a apresentar sintomas preocupantes: visão dupla, dormência, dificuldade para falar. Em pouco tempo, perdeu os movimentos dos braços e, por fim, a capacidade de se comunicar. A causa da morte foi diagnosticada como síndrome de Guillain-Barré, conhecida na época como paralisia de Landry — uma condição neurológica autoimune rara.
O caso despertou o interesse dos médicos alemães. Donnie não morreu em combate, mas de uma enfermidade complexa, e isso bastou para que seu corpo fosse visto como objeto de estudo. Após sua morte, foi realizada uma autópsia e, sem qualquer consentimento da família, partes de seu cérebro e medula espinhal foram removidas e enviadas ao Instituto Kaiser Wilhelm de Psiquiatria, em Munique — posteriormente rebatizado como Instituto Max Planck.
A ciência sobre os mortos
O século XX é um palco paradoxal. Ao mesmo tempo em que testemunhou avanços espetaculares na medicina, também viu horrores cometidos em nome da pesquisa científica. O corpo de Donnie foi enterrado inicialmente pelos próprios alemães e, mais tarde, pelos aliados, no cemitério de guerra da Commonwealth, em Berlim. Mas ninguém — absolutamente ninguém — sabia que ele não estava completo.
Foram necessários mais de 80 anos para que essa ausência fosse descoberta. Em 2020, o professor Paul Weindling, da Oxford Brookes University, contatou a sobrinha de Donnie, Libby MacRae. Foi ela quem recebeu, atônita, a notícia de que partes do tio estavam preservadas em lâminas de vidro em Munique — cerca de 160 cortes cerebrais e da medula, mantidos em arquivos até 2015, quando finalmente foram catalogados e armazenados.
Donnie e os outros esquecidos
Donnie não foi o único. Outros quatro soldados britânicos — Patrick O’Connell, Donald McPhail, Joseph Elston e William Lancaster — também tiveram seus cérebros retirados em 1941. Nenhuma de suas famílias foi informada. Ao todo, aproximadamente 2.000 cérebros foram extraídos para pesquisa nos institutos de Berlim e Munique durante a Segunda Guerra Mundial. Entre as vítimas estavam também judeus, católicos poloneses, prisioneiros políticos, pessoas com deficiência e até crianças assassinadas no contexto do Holocausto.
De forma chocante, esses materiais foram, por décadas, considerados patrimônio científico. Segundo a doutora Sabine Hildebrandt, da Faculdade de Medicina de Harvard, “a extração de tecido após a morte fazia parte da rotina científica da época” — não que isso torne o ato menos condenável, mas ilustra como a ética científica evolui com o tempo.
Após a guerra: silêncio e ocultamento
Quando o Terceiro Reich foi derrotado, muitos esperavam uma responsabilização completa. E, de fato, os Julgamentos de Nuremberg condenaram cerca de 200 pessoas por crimes de guerra. Porém, os institutos Kaiser Wilhelm — berço de tantas violações — continuaram a operar. Nenhuma ação concreta foi tomada contra os anatomistas que, em nome do saber, desrespeitaram os mortos.
Foi somente na década de 1980 que o governo alemão começou a exigir o descarte das amostras obtidas durante o período nazista. Em Munique, houve um enterro coletivo de centenas de milhares de lâminas de vidro, com um prazo curto imposto aos institutos. No entanto, nem todos os centros de pesquisa agiram da mesma forma. Em Berlim, preferiu-se enterrar tudo. Já em Munique, preservaram-se as amostras consideradas “cientificamente valiosas”, como as de Donnie.
Reunir os restos, resgatar a dignidade
Mais de oito décadas após a morte de Donnie, sua família finalmente terá a chance de se despedir dele de forma íntegra. Graças aos esforços de Weindling e sua equipe, a Comissão de Túmulos de Guerra da Commonwealth concordou em reunir os fragmentos cerebrais com o corpo, no cemitério militar de Berlim.
Libby MacRae, visivelmente emocionada, declarou: “É horrível pensar nisso tudo. Mas fico feliz que finalmente tudo de Donnie poderá descansar junto”. E deseja que um novo epitáfio, escrito em gaélico, seja adicionado ao túmulo do tio:
“Faodaidh an saoghal tighinn gu crìch ach mairidh gaol is ceòl gu bràth”
(“O mundo pode chegar ao fim, mas o amor e a música duram para sempre”).
Reflexões de um tempo sombrio
O caso de Donnie MacRae é mais do que uma exceção trágica. É uma chave que abre um armário abafado, onde jazem histórias não contadas da Segunda Guerra Mundial. Ele nos obriga a pensar em como tratamos os mortos, o quanto a ciência pode cruzar limites éticos e até onde a busca por conhecimento justifica práticas invasivas.
A História, como nos lembra Leandro Karnal, é feita de escolhas — e também de silêncios. Resgatar Donnie do esquecimento é mais do que um ato simbólico. É a afirmação de que nenhuma vida deve ser tratada como mera matéria de estudo. Que os corpos não são instrumentos. E que a dignidade, mesmo post-mortem, é um direito humano universal.