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Decameron: O Escândalo e a Revolução Sexual na Literatura Medieval

Entre as páginas amareladas pelo tempo, um dos mais provocativos e revolucionários textos da literatura ocidental emerge, desafiando não apenas os padrões morais de sua época, mas também resistindo ao passar dos séculos com uma relevância que ainda hoje ecoa. Decameron, de Giovanni Boccaccio, é um mosaico vibrante de histórias que atravessam as convenções sociais, religiosas e sexuais da Idade Média, lançando uma luz crua e muitas vezes cômica sobre os desejos humanos.

Considerada uma das obras mais escandalosas do cânone ocidental, Decameron é descrita pela revista The New Yorker como “provavelmente a mais obscena do cânone ocidental”. Este adjetivo, porém, não faz justiça à complexidade e à profundidade com que Boccaccio constrói seu universo literário. Publicada no século 14, durante os anos sombrios da peste bubônica, a obra é muito mais do que uma coleção de contos eróticos; é uma análise pungente da sociedade, da religião e das relações humanas, revestida de um humor satírico e de uma ironia que provocam tanto risos quanto reflexões.

O Contexto Historiográfico e Literário

A premissa de Decameron é simples e, ao mesmo tempo, engenhosa: dez jovens aristocratas, sete moças e três rapazes, refugiam-se no campo para escapar da peste que assolava Florença. Lá, isolados do caos e da morte que dominam a cidade, eles se dedicam a contar histórias uns aos outros, criando um espaço onde as normas sociais são temporariamente suspensas, permitindo a exploração de temas considerados tabu.

Boccaccio não apenas cria um ambiente fictício onde as barreiras sociais e sexuais podem ser transgredidas, mas também estabelece um diálogo entre diferentes formas narrativas, integrando fábulas, parábolas e contos em um único volume. Essa estrutura narrativa é comparável àquela encontrada em “Os Contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer, que, aliás, foi fortemente influenciado por Decameron. Acredita-se que Chaucer tenha lido a obra de Boccaccio durante uma viagem à Itália, e várias das suas histórias refletem essa influência direta.

Shakespeare, outro gigante da literatura, também se inspirou em Decameron, adaptando um dos contos para criar a trama de Bem está o que bem acaba. Esse legado literário demonstra a importância de Decameron não apenas como um registro das sensibilidades medievais, mas também como uma fonte inesgotável de inspiração para gerações subsequentes de escritores.

A Obscenidade como Ferramenta de Crítica Social

A notoriedade de Decameron não reside apenas na sua estrutura inovadora, mas também na maneira como Boccaccio aborda a sexualidade. Diferente da maioria dos autores de sua época, Boccaccio não se esquiva da representação da libido feminina. Pelo contrário, ele a retrata de maneira crua e sem censura, oferecendo uma visão de “igualdade de oportunidades” no que diz respeito ao desejo sexual.

No sexto dia das narrativas, por exemplo, uma discussão acalorada entre dois servos sobre a virgindade das mulheres casadas ilustra a franqueza com que o autor aborda temas sensíveis. A personagem Licisca, uma mulher de origens humildes, não hesita em afirmar que “não tenho uma vizinha sequer que fosse virgem quando se casou”. Essa afirmação escandalosa, que provoca gargalhadas nas jovens aristocratas, expõe as hipocrisias e as contradições da moralidade medieval.

Outro exemplo emblemático é a história de Masetto, um jovem camponês que se finge de surdo para conseguir um emprego como jardineiro em um convento. Sua surdez simulada faz com que as freiras, acreditando estar seguras de suas investidas, se entreguem a ele, resultando em uma série de encontros sexuais que desafiam qualquer noção de castidade. Boccaccio não apenas subverte a figura da freira, tradicionalmente vista como símbolo de pureza, mas também joga luz sobre os desejos reprimidos e as tensões que permeiam as instituições religiosas.

Essa crítica à autoridade religiosa é um dos elementos mais subversivos de Decameron. Boccaccio retrata monges e abades não como figuras santas, mas como indivíduos tão suscetíveis aos prazeres carnais quanto qualquer outro. Em um dos contos, um abade se apaixona por uma mulher casada e, para concretizar seu desejo, droga o marido ciumento e o faz acreditar que está no purgatório, permitindo-lhe encontros secretos com a esposa. Essa irreverência em relação ao clero não passou despercebida pela Igreja, que incluiu Decameron em seu Índice de Livros Proibidos em 1559.

Decameron na Cultura Popular e nas Adaptações Modernas

Apesar das tentativas de censura, Decameron resistiu ao tempo, e suas histórias continuam a fascinar leitores de todas as eras. Quando a pandemia de COVID-19 eclodiu, a obra de Boccaccio, com sua descrição vívida de uma sociedade em colapso, voltou a ser amplamente lida, esgotando rapidamente nas livrarias. Esse ressurgimento de interesse culminou na adaptação da obra para a série da Netflix, Decameron, que, embora tome liberdades criativas, mantém o espírito transgressor e subversivo do original.

A nova série, criada por Kathleen Jordan, usa a anarquia social descrita por Boccaccio como pano de fundo para explorar temas contemporâneos, como a crescente desigualdade entre ricos e pobres em tempos de crise. A série também joga com a ideia de realinhamento social, onde as rígidas hierarquias medievais são desafiadas, e os servos podem temporariamente se passar por seus mestres.

A Perpetuidade do Prazer e da Irreverência

Sete séculos após sua publicação, Decameron permanece uma leitura vibrante e relevante, não apenas por sua audácia literária, mas também por sua capacidade de capturar as complexidades das interações humanas. As histórias de Boccaccio, repletas de humor, erotismo e crítica social, oferecem uma janela para a psique medieval, ao mesmo tempo em que continuam a dialogar com o leitor moderno.

Decameron não é apenas um relicário da literatura medieval, mas um testamento da resistência e da universalidade das histórias bem contadas. Seja no texto original ou nas suas inúmeras adaptações, a obra de Boccaccio continua a escandalizar, divertir e, acima de tudo, fazer pensar.

Conclusão: O Legado Duradouro de ‘Decameron’

Decameron não é apenas uma obra obscena; é um tratado sobre a natureza humana, onde o desejo, a moralidade e a crítica social se entrelaçam em um tecido literário ricamente elaborado. Através de seus contos, Boccaccio convida o leitor a explorar as contradições e os paradoxos da vida, oferecendo uma perspectiva que, apesar de profundamente enraizada no contexto medieval, transcende o tempo e continua a ressoar nos dias atuais.

A leitura de Decameron é uma experiência que desafia e enriquece, revelando as complexidades e as nuances da condição humana em todas as suas formas. Ao longo de suas páginas, Boccaccio nos guia por um caminho de descobertas, onde o riso e o choque coexistem, criando uma narrativa que é ao mesmo tempo provocativa e profundamente humana.
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