Leitura de História

Cardeal in pectore: o segredo papal na história da Igreja

No imaginário popular, o Vaticano sempre foi cercado de mistérios, e poucos são tão intrigantes quanto a nomeação secreta de cardeais, conhecidos como in pectore. Essa prática, que remonta ao século XVI, tem como principal objetivo proteger o religioso nomeado em situações de risco, seja por perseguições políticas ou religiosas. Com o filme Conclave (2024), baseado no livro de Robert Harris, o tema volta ao debate, suscitando questões sobre a legitimidade e o impacto desse dispositivo no governo da Igreja.

O que significa ser um cardeal in pectore?

A expressão latina in pectore, que significa “no peito”, refere-se a uma nomeação confidencial feita pelo papa. Em circunstâncias normais, a criação de novos cardeais ocorre publicamente, sendo um evento de grande repercussão no Vaticano. No entanto, em casos excepcionais, o pontífice pode optar por não divulgar o nome do escolhido, mantendo-o em segredo por tempo indeterminado.

Historicamente, esse mecanismo foi utilizado para proteger religiosos de perseguições, especialmente em países onde a Igreja enfrenta restrições severas. Quando o papa decide revelar a nomeação, o cardeal passa a exercer plenamente suas funções, sendo sua data oficial de criação retroativa ao momento em que foi escolhido. Entretanto, se o papa morre antes de tornar pública a nomeação, o título perde automaticamente a validade.

O Código de Direito Canônico de 1983 estabelece que “os cardeais in pectore só possuem autoridade de cardeal a partir da publicação de seu nome pelo romano pontífice”. Ou seja, sem a oficialização pública, o religioso não tem direito a participar de um conclave ou exercer as prerrogativas do cargo.

Por que o papa nomeia cardeal in pectore?

A nomeação secreta de cardeais atende a diferentes propósitos dentro da Igreja. 

Entre os principais motivos estão:

  • Proteção do nomeado: Em regimes totalitários ou países hostis ao catolicismo, a divulgação de uma nomeação poderia colocar o religioso em perigo.
  • Evitar conflitos políticos e religiosos: Em alguns casos, a Igreja precisa agir com cautela para não agravar tensões regionais.
  • Reconhecimento de méritos: O papa pode escolher alguém por sua dedicação à , mesmo sabendo que a revelação de sua identidade pode ser adiada indefinidamente.

Essa prática, embora misteriosa, não é inédita. O papa João Paulo II, por exemplo, nomeou in pectore o cardeal Ignatius Kung Pin-mei em 1979, mas só revelou sua identidade em 1991, quando o religioso conseguiu sobreviver às perseguições do governo chinês.

Casos históricos de cardeal in pectore

O primeiro registro conhecido de uma nomeação in pectore remonta ao século XV, quando o papa Martinho V nomeou os cardeais Domingo Ram y Lanaja e Domenico Capranica, tornando suas identidades públicas sete anos depois. No século XVII, o papa Clemente VIII consolidou essa prática, e sua regulamentação foi incluída no Direito Canônico.

No século XX, João Paulo II utilizou esse dispositivo em pelo menos três ocasiões, sendo um dos casos mais emblemáticos o do ucraniano Marian Jaworski e do letão Jānis Pujāts, ambos nomeados em 1998, mas revelados apenas em 2000.

Mais recentemente, o papa Francisco não fez nenhuma nomeação in pectore oficialmente conhecida. No entanto, um episódio marcante ocorreu em 2013, quando, logo após ser eleito, ele colocou seu solidéu vermelho na cabeça de Lorenzo Baldisseri, então secretário-geral do conclave. Esse gesto foi interpretado por muitos especialistas como uma nomeação informal, posteriormente confirmada em 2014.

A ficção e os cardeais in pectore

A figura do cardeal in pectore tem fascinado escritores e cineastas há décadas. No romance As Sandálias do Pescador (1963), de Morris West, um cardeal ucraniano nomeado secretamente se torna papa. Já em Vaticano: Um Romance (1986), de Malachi Martin, e O Cardeal Secreto (2007), de Tom Grace, essa prática aparece como um elemento central das tramas.

No filme Conclave, o personagem Vincent Benítez chega à eleição papal munido de um documento que comprova sua nomeação secreta pelo papa falecido. Na realidade, um cardeal in pectore só teria autoridade se seu nome tivesse sido revelado pelo pontífice em vida. A obra, porém, dramatiza a situação, criando um enredo repleto de intrigas e reviravoltas.

O futuro dessa prática no Vaticano

Com a crescente transparência da Igreja sob o pontificado de Francisco, a prática de nomeações in pectore pode estar se tornando menos comum. Ainda assim, em tempos de perseguições religiosas e conflitos geopolíticos, esse mecanismo continua sendo uma ferramenta relevante para a proteção de líderes eclesiásticos.

A história demonstra que, mesmo nos bastidores do Vaticano, há segredos que podem permanecer ocultos por décadas — e, às vezes, até para sempre.