Leitura de História

Eufrásia Teixeira Leite: fortuna, liberdade e modernidade

Na história do Brasil Império e da Primeira República, há personagens cuja trajetória escapa aos padrões da época, desafiando o destino reservado às mulheres de sua classe e tempo. Entre elas, destaca-se com brilho próprio Eufrásia Teixeira Leite (1850–1930), uma aristocrata fluminense que trocou o destino doméstico pela independência financeira e pela atuação pioneira no universo dos negócios. Sua vida, repleta de nuances, atravessa temas como capitalismo, feminilidade, abolicionismo, moralidade e cosmopolitismo — sendo, por isso, ainda mais fascinante aos olhos contemporâneos.

No mundo em que nasceu, a mulher aristocrática era formada para casar bem, administrar o lar, tocar piano e dominar o francês, não para dominar a bolsa de valores de Paris. Contudo, Eufrásia soube ler com acuidade os sinais de seu tempo e, ao fazê-lo, rompeu os limites silenciosos impostos ao gênero feminino.

Nascida em 15 de abril de 1850, em Vassouras, cidade então símbolo do apogeu cafeeiro e da aristocracia escravocrata fluminense, Eufrásia era herdeira de duas famílias abastadas: os Teixeira Leite, do lado paterno, e os Correia e Castro, por parte de mãe. A vida confortável da infância foi acompanhada de uma formação incomum para meninas. Seu pai, Joaquim José Teixeira Leite, era um homem instruído, formado em Direito e politicamente influente — vice-presidente da Província do Rio de Janeiro. Mais que isso, era pragmático. Percebia que a escravidão, embora economicamente lucrativa, apresentava riscos crescentes: revoltas, instabilidade jurídica e pressões internacionais.

É nesse contexto que Joaquim José decide oferecer às filhas uma educação fora dos padrões. Ao invés de limitar-se à gramática francesa e às artes do lar, ensinou-lhes matemática financeira, princípios de mercado, lógica e técnicas de investimento. Tal atitude era, à época, quase revolucionária. Como observa o professor Flávio Bragança, a biblioteca pessoal da família, hoje preservada no Museu Casa da Hera, possuía cerca de mil volumes — algo raríssimo no Brasil oitocentista.

O falecimento precoce dos pais — a mãe em 1871 e o pai no ano seguinte — deixou Eufrásia, aos 22 anos, herdeira de uma considerável fortuna. Junto à irmã, Francisca Bernardina, enferma e sem aptidão para os negócios, decidiu partir para Paris, símbolo da modernidade, do refinamento e do capitalismo ascendente. Ali, distantes das pressões do entorno familiar brasileiro, ambas viveriam por mais de meio século.

Mas Eufrásia não foi à Europa para se recolher em salões. Ela foi à capital francesa para fazer história — discretamente, como era próprio de seu estilo. Foi a primeira mulher brasileira a investir na Bolsa de Valores de Paris, ambiente quase exclusivo de homens, banqueiros e aristocratas ligados aos grandes capitais industriais.

Como destaca a antropóloga Priscila Faulhaber, da UniRio, Eufrásia não apenas operava nesse mundo masculino, mas o fazia com competência, ousadia e intuição. Não negociava presencialmente — o que lhe seria vetado socialmente —, mas controlava rigorosamente os investimentos feitos por meio de prepostos de confiança, como Albert Théodore Guggenheim, seu administrador e homem de confiança por décadas.

Empreendedora sofisticada, aplicou seus recursos em setores dinâmicos da economia: ferrovias, energia, mineração, bancos e imóveis. Seus aportes em companhias como a Union Pacific Railway, o Credit Suisse, e investimentos em Copacabana, à época ainda em expansão urbana, demonstram sua visão estratégica.

Essa atuação financeira foi conduzida de maneira sóbria. Como ressalta o pesquisador Cirom Duarte e Alves, Eufrásia não era uma mulher excêntrica ou extravagante. Seu estilo de vida era confortável, mas não ostentatório. Ao contrário do imaginário sobre herdeiras endinheiradas, não se perdeu em frivolidades: viveu com elegância, porém com contenção.

Ao mesmo tempo, Eufrásia era uma mulher sensível ao seu tempo e à sua condição. Embora tivesse origem numa estrutura escravocrata — como o Brasil da época inteira —, seu posicionamento ao longo da vida denota uma sensível transição ética. Em 1884, durante uma das raras visitas ao Brasil, libertou os escravizados que ainda pertenciam à família, quatro anos antes da Lei Áurea. Um gesto com mais de simbolismo: um posicionamento.

Eufrásia também é lembrada por seu envolvimento amoroso com o diplomata e abolicionista Joaquim Nabuco, com quem manteve um relacionamento longo, porém não oficializado por casamento. Os motivos para essa ruptura são debatidos, mas a leitura mais aceita aponta para a preservação de sua autonomia patrimonial e jurídica — que seria dissolvida no casamento, conforme determinava o Código Civil da época.

E isso nos revela outro traço essencial de sua personalidade: a busca consciente pela independência feminina, em tempos nos quais a mulher era tutelada, antes pelo pai, depois pelo marido. Eufrásia escolheu não se casar, não por recusa ao afeto, mas por amor à liberdade. A decisão, absolutamente rara, talvez custosa do ponto de vista afetivo, lhe assegurou o controle integral sobre sua fortuna e seu destino.

Contudo, sua solteirice não significou reclusão. Ela frequentava salões, festas, concertos, peças teatrais e jantares na alta sociedade parisiense. Os jornais da época, como o conservador Le Gaulois, a mencionam como presença constante nos eventos de prestígio. Era, segundo a imprensa, “conhecida por sua distinção e beleza”. Vestia-se com elegância, inclusive com roupas da célebre Maison Worth, berço da alta-costura.

Como tantas figuras notáveis, Eufrásia terminou sua vida discretamente. Retornou ao Brasil em 1928, já idosa, depois de mais de meio século vivendo na Europa. Faleceu dois anos depois, sem herdeiros diretos. Seu testamento, porém, foi mais eloquente do que qualquer autobiografia. Deixou sua vasta fortuna a instituições de caridade e educação — tanto no Brasil quanto na França. Em valores atualizados, trata-se de mais de R$ 1 bilhão.

A dimensão filantrópica de seu legado é coerente com uma vida de discrição, sabedoria e senso ético. Eufrásia, ao doar a fortuna que multiplicou com talento, parece ter encerrado sua trajetória como começou: com visão e elegância.

Mas o que torna Eufrásia Teixeira Leite tão relevante aos dias atuais?

Talvez seja o fato de que ela encarna, em pleno século XIX, uma modernidade possível e ética. Não foi revolucionária no sentido político, mas foi subversiva em seu modo de existir. Fez fortuna, mas sem ostentar. Não teve filhos, mas cultivou laços afetivos. Manteve-se só, mas nunca isolada. Foi discreta, porém exemplar. Enfrentou o machismo estrutural, as convenções sociais e as armadilhas do romantismo patriarcal — e venceu, com altivez.

Como diria um historiador, Eufrásia não apenas viveu sua época: ela a interpretou e a transcendeu. E por isso, mesmo quase um século após sua morte, continua a nos desafiar, a nos inspirar e a nos ensinar.