A arte mística de Evelyn De Morgan enfrenta dragões, guerras e desigualdade em uma jornada visual de espiritualidade e resistência.
Imagine uma praia que parece saída de um pesadelo mitológico: rochas que brilham como brasas vivas, serpentes aladas espreitando entre a névoa sulfúrica, e humanos acorrentados implorando a um anjo para que os liberte do jugo invisível. Eis a cena de Death of the Dragon (A Morte do Dragão), pintura monumental criada por Evelyn De Morgan entre os anos fatais de 1914 e 1918. Em plena Primeira Guerra Mundial, essa mulher, pintora, mística, pacifista e – por que não? – profetisa das cores, ousou transformar a dor coletiva em arte transcendental.
Diferente do que o título sugere, o dragão que ruge nesta obra não é um bicho literal: é o símbolo da guerra, do sofrimento humano e da brutalidade que espreita sob o verniz da civilização. E o anjo, resplandecente sob um arco-íris que remete à promessa bíblica de um novo tempo, encarna a esperança. Porque, para Evelyn, mesmo o apocalipse pode conter um fio de luz.
Uma mulher contra o século
Evelyn De Morgan (1855–1919) não era qualquer artista vitoriana. Nascida Mary Evelyn Pickering, ela trocou o primeiro nome por algo mais neutro – e ousado – como um gesto de rebeldia contra a invisibilidade feminina no mundo das artes. Formou-se na prestigiosa Slade School of Fine Art (algo raríssimo para uma mulher naquela época), recusou o papel decorativo que a sociedade lhe reservava e decidiu pintar temas profundos, desconfortáveis, simbólicos – e, acima de tudo, espirituais.
Seu círculo social não era menos extraordinário: ela era sobrinha de John Roddam Spencer Stanhope, um dos artistas mais respeitados do movimento pré-rafaelita; amiga de nomes como William Holman Hunt e Dante Gabriel Rossetti; e casada com o ceramista e escritor William De Morgan, colaborador de ninguém menos que William Morris, o papa do design vitoriano.
Mas mesmo cercada de homens famosos, Evelyn seguiu um caminho próprio. Enquanto os pré-rafaelitas muitas vezes romantizam a mulher como flor decorativa ou mártir passiva, De Morgan retratava deusas, bruxas, anjos e guerreiras: figuras femininas que não pediam licença para existir.
Entre pinceis e trincheiras
Death of the Dragon foi criada durante o ápice da Primeira Guerra Mundial – uma época em que Londres estava sob o som de sirenes, explosões e telegramas com más notícias. A guerra, que devastou mais de 16 milhões de vidas em todo o mundo, era sentida de forma aguda pelos De Morgan. Eles viviam em Chelsea, bairro londrino onde os ataques aéreos deixavam marcas visíveis e invisíveis. Membros da família de William morreram de tuberculose; ele próprio sofria com a saúde debilitada. A morte, literalmente, era uma presença constante.
Evelyn era pacifista convicta. Ela acreditava que a guerra era uma invenção diabólica, uma perversão dos valores espirituais. Em The Result of an Experiment (1909), obra escrita em coautoria com William, ela afirmou com todas as letras: “Nunca se deve louvar a guerra. O Diabo a inventou.” E foi essa indignação, essa angústia canalizada, que ela verteu sobre a tela com a fúria contida de quem luta com tintas em vez de armas.
Alegoria e crítica: o poder da metáfora
Obras como Death of the Dragon não são meramente ilustrativas. São alegorias, mapas simbólicos de uma alma em busca de sentido. Como observou a curadora Jean McMeakin, da Fundação De Morgan, “com cenas apocalípticas, há sempre um vislumbre de esperança”.
As serpentes coroadas, por exemplo, representam a ganância. Os acorrentados simbolizam a humanidade escravizada por interesses materiais. O anjo irradiante, que ecoa a Vênus de Botticelli, é a própria espiritualidade, a crença em algo além da lama das trincheiras.
Essa estrutura não surge do nada. Evelyn era profundamente influenciada pelo simbolismo, pelo espiritualismo vitoriano e pelas tradições clássicas. Obras como Boreas and Oreithyia (1896) mostram seu domínio da forma humana e sua paixão pela mitologia grega. Ela estudava Botticelli, Michelangelo, Rafael – e ao mesmo tempo lia Conan Doyle, médiums, e textos esotéricos.
Feminismo antes da palavra virar moda
Em The Prisoner (1907–1908), uma mulher acorrentada à janela se torna símbolo da opressão de gênero. Em Luna(1885), a deusa da lua está amarrada, impotente. São imagens de mulheres com poder cerceado – um reflexo não só do sofrimento coletivo, mas também de sua vivência pessoal em uma sociedade que tratava artistas mulheres como diletantes ou curiosidades. Evelyn, porém, não pediu permissão: assinou petições sufragistas, e seu marido foi vice-presidente da Liga Masculina pelo Sufrágio Feminino.
Sua arte, portanto, é política, espiritual, estética e profundamente pessoal. E isso a torna, hoje, um ícone redescoberto de um tempo que tentou silenciá-la.
Técnica e vanguarda
Aos olhos de hoje, seus quadros surpreendem não só pela mensagem, mas pelo visual. Evelyn usava cores incomuns – rosas profundos, lilases vibrantes – e técnicas próprias. Misturava pigmentos com glicerina, polia superfícies, criava efeitos de luz que antecipam até a psicodelia dos anos 1970. Seus monstros poderiam figurar em capas de livros de fantasia contemporâneos – e não destoava em nada.
Um legado reacendido
A nova exposição Evelyn De Morgan: The Modern Painter in Victorian London, na Guildhall Art Gallery, celebra justamente isso: uma artista que ousou transcender seu tempo, seus pares e suas próprias amarras. Com obras restauradas, recriações de telas perdidas no incêndio de 1991 e um olhar renovado sobre seu simbolismo espiritual, a mostra resgata uma Evelyn que foi vanguarda, mesmo sendo relegada ao rodapé da história por décadas.
Ela escreveu, aos 17 anos: “A arte é eterna, mas a vida é curta. Não tenho um momento a perder.” Não teve mesmo. E graças a isso, nós também não devemos desperdiçar a chance de olhar seus quadros e, quem sabe, ver neles não apenas o passado – mas um espelho do presente.